898-TRUQUES DE ADVOGADO- Causo de Triunal

As reuniões matutinas na Farmácia Barcelona eram sempre animadas e resultavam em discussões do mais alto nível. Naquela segunda feira, nem bem haviam sido abertas as portas pelo esperto ajudante Manuel, o assunto derivou para a condenação de Salvador Nepomuceno, envolvido na morte de Alvino Miranda, cujo corpo nunca foi encontrado.

— Desta vez o promotor levou a melhor, mas foi por culpa do Dr. Aldrovaldo, que defendia o réu. — Disse o farmacêutico.

— É, ele é cheio de tretas judiciais, tentou aplicar uma e se lascou.

O caso do qual falavam foi um dos mais polêmicos já tramitados pelo fórum de São Roque da Serra e pode-se resumir no seguinte:

Salvador e Alvino eram inimigos há muitos anos, desde que Salvador descobriu que sua mulher lhe ornava a testa com um belo par de chifres. E correu pela cidade que o outro era Alvino, justamente seu colega de trabalho no Matadouro Municipal.

Alvino desapareceu no dia seguinte a uma altercação entre os dois no Bar do Biro, após algumas doses de cachaça atravessadas nas goelas. A discussão só não terminara em briga devido ä turma do deixa-disso, que interveio. A confusão foi grande, a ponto de Biro determinar a saída de todo mundo do bar e fechamento das portas pelas nove da noite, bem mais cedo do que de costume.

Não sem antes serem ouvidas as ameaças de Salvador a Miranda: “Ainda te mato, filho da puta!”

Na manhã seguinte, a mulher de Alvino estava desesperada, correndo a casa dos vizinhos, procurando ajuda, pois o marido não aparecera em casa prá dormir, coisa que nunca tinha acontecido.

A notícia ou denúncia foi parar na sala do Delegado Davanti, eficiente autoridade de reconhecida competência. Entretanto, por mais que diligências acontecessem, o corpo não apareceu.

As suspeitas de uma morte seguida de ocultamento do corpo caíram todas sobre Salvador, tendo em vista não só a briga da noite anterior, como a odiosa relação entre os dois. Salvador foi inquirido diversas vezes e jamais confessou qualquer coisa. Davanti encerrou seu processo, enviado ao juiz, com a indiciação de Salvador como suspeito.

Como foi considerado sem recursos para contratar um advogado, o juiz determinou ao doutor Aldrovaldo Camargo para a defesa do réu.

Não fora difícil ao promotor público colocar a rixa entre os dois como causa do suposto assassinato e a promessa de Salvador no bar, de matá-lo a qualquer momento.

— Quanto ao desaparecimento do corpo de Alvino — finalizou o promotor — devemos levar em consideração que Salvador trabalha no matadouro, acostumado a cortar e esquartejar bois e porcos diariamente. Para ele, despedaçar Alvino foi coisa de somenos e esconder o corpo em algum lugar remoto e ignorado não foi difícil.

O Doutor Aldrovaldo, observando que os jurados estavam fortemente impressionados com a exposição do Promotor, recorreu, ao final de sua defesa, a um truque que julgara suficiente para livrar seu constituinte da culpa imputada.

— Senhor Juiz, senhores jurados, tenho um surpresa para todos — disse olhando para o relógio. — Dentro de dois minutos, Alvino, que todos acham que foi assassinado, entrará neste recinto, nesta sala do tribunal.

E olhou para a porta.

Os jurados, o Juiz, o Promotor e todos os que assistiam o julgamento foram tomados de surpresa e ficaram olhando para a porta. Olhos fixos, ansiosos. Alguns murmúrios. Passados os dois longos minutos e nada aconteceu. Nem uma mosca entrou pela porta.

O Juiz, batendo o martelo na sua banca, determinou:

— Dr. Adrolvaldo, conhecemos sua atividade neste forum. Mas esta mentira superou tudo o que o senhor já apresentou em julgamentos. Por favor, encerre sua defesa de modo digno e juridicamente aceitável.

Retomando a palavra, o defensor de Salvador completou:

— Sim, Excelência. Realmente, quando eu disse que Alvino apareceria, todos vocês olharam com ansiedade para a porta, na expectativa de ver por ela entrar a suposta vítima. Portanto, está claro que todos, inclusive os jurados, têm dúvida neste caso, se alguém realmente foi morto. TODOS DUVIDAM QUE ALVINO ESTÁ MORTO!

A última sentença foi dita em voz alta, a fim de impressionar principalmente os jurados. E proseguiu:

— Por isso, como vocês têm dúvida insisto para que considerem o meu cliente inocente, apelando para o pricípio jurídioco “in dubio pro reu”, ou seja, NA DUVIDA, A FAVOR DO RÉU.

Novamente exclamou as palavras finais como um ator ao encerrar uma peça de suspense.

Os jurados, visivelmente impressionados com o discurso do advogado da defesa, retiram-se para a sala a eles destinada para a decisão final.

Aguns minutos depois, os jurados voltaram e ouviu-se na sala o veredicto:

— CULPADO!

Pedindo a palavra pela última vez (quebrando o protocolo e autorizado pelo juiz), o Dr. Adrovaldo exclamou:

— Mas como? Eu ví todos vocês olharem fixamente pra aporta. Era de se concluir que estavam em dúvida. Com condenar na dúvida?

O juiz, não escondendo um sorriso malicioso, esclareceu:

— Sim, todos olhamos pra a porta...

E concluiu com voz clara:

—... MENOS O SEU CLIENTE, pois ele sabia que ninguém iria aparecer.

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Na farmácia, entre os comentários, a voz á um pouco baixa do professor Epaminondas, que era também advogado, se fez ouvir:

“Não adianta ser um bom advogado se o cliente for estúpido.”

ANTONIO ROQUE GOBBO

Saint Louis, MO, USA – 30 de abril de 2015

Conto # 898 da série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/11/2015
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