Doméstica...

Todos os dias as cinco horas da manhã toca o despertador e ela levanta- se imediatamente. Senta-se por uns dois minutos à beira da cama, medita como será seu dia, reza e pede a Deus que a proteja. Após sua oração vai direto ao chuveiro, toma um banho rápido, pois vê diariamente na televisão a necessidade de se economizar a água. No banheiro mesmo ela se veste, arruma o cabelo e faz sua maquiagem, pois nunca deixou de ser vaidosa. Sai do banheiro já arrumada, coloca a água no fogo, põe o pó no coador e quando a água ferve passa seu café. Café esse que nunca poderia viver sem; o cheiro, o gosto e a sensação boa do café em sua boca é um dos poucos prazeres que ela tem na vida. Passa margarina no seu pão, senta-se à mesa e come como se aquele momento fosse um momento de lazer. Ao final de seu breve café da manhã, vai até a cama do filho de onze anos, beija-o na testa, acaricia-lhe o rosto, ajusta o cobertor ao seu corpo e sai devagar para não o incomodar. Olha a casa arrumada na noite anterior como se fosse um troféu, casinha simples da periferia, mas conquistada a duras penas ao longo dos anos. Se dirige até a porta e sai, tranca a fechadura com a chave e segue ao seu destino, o ponto de ônibus.

Em seu percurso até o ponto ela chega a cantarolar uma música popular, faz isso para sentir um pouco de conforto e lembrar de alguns momentos alegres em seu passado. Traça um caminho por vielas, ruas esburacadas e atravessa uma ponte com esgoto a céu aberto. No caminho ela encontra cachorros, gatos e ratos, todos esses seres parecem fugir a suas naturezas e convivem em harmonia. O sol ainda não nasceu, ela caminha e sente a brisa fria do final da madrugada e gosta dessa sensação, pois é um raro momento em que tem a ilusória sensação de liberdade. Atravessa a última rua, chega ao ponto e lá encontra algumas pessoas que também entrarão na fila do ônibus; mesmo ônibus, porém destinos diferentes de vidas parecidas. Sempre encontra uma amiga com quem gosta de falar sobre o capítulo anterior da novela. Fala com ela, porém quando entram no ônibus ela senta sempre no mesmo lugar, um banco isolado que em épocas remotas costumava-se chamar de “chiqueirinho”. Ao sentar-se põe um fone no ouvido, coloca em uma rádio evangélica, encosta a cabeça no vidro e dorme até chagar ao terminal de ônibus, onde ela pegará outro ônibus até seu serviço em um bairro nobre. No outro ônibus ela nunca consegue assento, vai em pé e alegra-se no dia em que consegue encostar-se em algum lugar e não precisa passar uma hora sendo jogada de um lado para outro no corredor.

Desce em um bairro nobre, caminha pelas ruas amplas, arborizadas e bem projetadas sentindo a diferença entre o seu bairro de casas mal projetadas, ruas esburacadas e esgotos a céu aberto. Mas de qualquer forma agradece a Deus pela sua casa, seu filho e seu emprego que garante o sustento dela e do garoto. No seu percurso passa por duas guaritas de segurança, cumprimento-os todos os dias. Passa por portões enormes que se abrem e de dentro das mansões saem carros de todos os tipos, carros que ela nem sonha em saber os nomes ou marcas. Tem apenas a certeza de nunca ter visto nada igual em seu bairro. Chega à mansão onde trabalha, toca o interfone e quem a atende todos os dias é o motorista da casa. Ele abre o portão, ela entra e segue direto para a cozinha, seu local de trabalho. O ambiente em que trabalha não é ruim, ela se dá bem com os colegas, todos da periferia, uns mais amigáveis, outros não, mas em geral ela se sente bem nesse ambiente. Na mansão trabalham cotidianamente sete pessoas: ela, dois motoristas, duas mulheres que cuidam da limpeza interna da casa, um senhor que cuida da limpeza externa e diária e também cumpre alguns mandados feitos pela governanta. Durante o expediente ela conversa, canta, brinca com os colegas de trabalho e o dia passa como se tivessem se passado duas horas.

A família para quem ela trabalha, em seu ponto de vista não é má. É composta de marido, mulher e dois filhos já adultos. O chefe da família é engenheiro, a mulher médica, um filho é diretor de cinema e o outro é arquiteto. Raramente se encontram todos à mesa do café da manhã, cada um tem seu horário e sua rotina. Mas quando se encontram ela escuta debates de opiniões diferentes a respeito de tudo, desde arte, até a situação econômica do País. Às vezes os debates são acalorados e eles chegam quase a brigar pois o cineasta tem uma visão muito diferente de mundo, seu pai por sua vez não concorda e sempre quer impor sua forma de avaliação, a mãe, dividida, ora defende um, ora defende outro, o arquiteto mantêm-se sempre neutro e às vezes ri, às vezes meneia a cabeça e em outros momentos simplesmente se cala. Quando ela vê esses debates, ri por dentro, em seu pensamento é uma bobagem esse negócio de discutir sobre pinturas de quadro, qual compositor é mais aprazível, uma tal de metafísica, que ela nunca conseguiu saber o que era ou até mesmo a discussão sobre religião e política, que desde cedo ela aprendeu que não se discute. Porém em geral, ela gosta de ouvi-los, pois acha a forma que eles falam muito gostosa de se ouvir, mesmo muitas vezes não entendendo ou concordando com a maioria das coisas. Sempre quando o chefe da casa se levanta para se dirigir à garagem, passa por ela e diz em tom amistoso e brincalhão que enquanto ela faz comida e lava louças, ele vai trabalhar e ajudar no crescimento do País. Quando o filho cineasta está presente e escuta isso, ele toca no ombro dela e diz ao pai que talvez ela esteja contribuindo ainda mais para esse crescimento do que o pai. O pai responde de forma brincalhona que não sabe o que fez da vida para que o filho não conseguisse enxergar as coisas como elas são, e os dois saem.

Ela passa o dia preocupada com o filho. Quando é meio dia e meia, liga para saber se ele está em casa, se comeu a comida que ela deixou na geladeira para que fosse esquentada no micro-ondas após ter chegado da escola, se ele foi bem na escola, ver se o garoto não brigou, se tem lição de casa, e termina dizendo que não é para sair para a rua, pois o futebol é só no final de semana. E antes de desligar o telefone lembra-o de que não pagou caríssimo em um vídeo game para ele ficar na rua e que a rua não é lugar de criança. Desliga o telefone com uma sensação agradável por notar que está tudo bem com seu maior tesouro. Devido a criação rígida que teve de seus pais, nunca disse ao filho que o amava, talvez ela nunca tenha pensado direito sobre a importância de dize-lo, mas seu sentimento é indescritível todas as vezes que lembra do filho ou fala com ele. Quando chega ao final de seu expediente as 17:00 hs, ela já fez todas as suas tarefas. Ao sair deixa tudo em ordem, o jantar pronto para ser servido à família pela empregada que dorme na casa, a cozinha arrumada e tudo preparado para facilitar sua vida no outro dia. Sempre quando está indo embora, olha aquela casa e percebe o quão bonita ela é e se pergunta qual é a graça de ter uma casa daquela e não usufruir direito, e mais, como a pessoa pode ter uma casa e deixar todos os dias em mãos de estranhos? Mas se faz essas perguntas que não sabe responder e logo desiste da resposta e vai embora. Com um único desejo: chegar em sua casa e ver seu filho.

O caminho de volta é mais complicado do que o que é percorrido pela manhã. Apesar de ser o mesmo caminho, o ônibus vem lotado, muitas vezes ela não consegue entrar, tem que esperar o próximo e fica revoltada com a situação, mas da graças a Deus, e pensa que apesar de tudo isso muitas pessoas queriam estar no lugar dela e poder sustentar suas casas. O ônibus cheio, as pessoas se digladiam por uma posição melhor até chegar a seus destinos, em sua mente nunca se passou que na vida também é assim, só que com uma diferença: na vida, nunca chegamos a lugar algum. O congestionamento de uma cidade projetada para carros muitas vezes torna a viagem pior. Dentro do ônibus trabalhadores que defenderam o pão a duras penas algumas vezes brigam entre si devido a falta de conforto e a ansiedade de sair daquela situação, que apesar de cotidiana, é humilhante. Quando chega ao terminal, local onde pega o transporte para o seu bairro, sempre decide por não esperar na fila até que venha outro ônibus menos cheio, ela entra no primeiro que aparece e ansiosa para chegar em sua casa e descansar na companhia de seu filho, nem pensa na situação semelhante ao gado em que se encontra em mais um ônibus.

Quando sai de casa ainda está escuro, quando volta já é noite, chega por volta das oito da noite, vai direto ao banho rápido para que não se gaste muita água, depois vai à cozinha para preparar o jantar. Enquanto prepara a comida conversa com seu filho que sempre corresponde ao seu carinho, nesses momentos ela se sente realizada, sente que sua missão daquele dia foi cumprida e que valeu a pena mais aquele sacrifício. Geralmente acaba de fazer a comida quando a novela está começando, põe o seu prato, o de seu filho, senta-se no sofá e come assistindo a novela. Seu único momento de lazer durante o dia. Com a novela ela se se alegra, se entristece, se compadece e se indigna, tudo depende do capítulo. Ao acabar a novela, levanta-se automaticamente, escova os dentes com a torneira fechada para economizar água, durante a escovação dos dentes pensa que está esbanjando água tomando dois banhos ao dia, um pela manhã e outro quando chega, mas fazer o que? Ela não quer ter mal cheiro. Ao final da escovação ela põe o garoto para a cama, desliga as luzes para economizar, vai a seu quarto, senta-se na cama, faz sua oração a Deus agradecendo por mais aquele dia e deita-se. Geralmente deita exausta e o sono logo vem. Há noites em que tem sonhos, outras, pesadelos, mas não importa, o que importa é descansar para que no outro dia tudo corra bem novamente.