Primeiros buracos humanos

Sim, eu o cavei mais fundo do que imagina. Porém, não sei de onde recolher a terra para tapar um poço tão fundo, capaz de caber toda a lástima e vergonha da humanidade. Cada pá de terra retirada, cada esforço concebido para afundar mais a comodidade da vida, foi se reiterando em movimentos lentos da vida. O problema, não sei onde foi parar a terra, quero recuperá-la para tapar o buraco, ou seria a fossa.

A história não teria nada haver com este bobial desabafo, se não fosse a realidade. Sim, ela nos permite a comparação.

Era cedo. Ele acordou com um nó no estomago. Sabia o que era, mas não sabia por que o era. Tentou por várias vezes desviar o pensamento daquilo. Queria ser carregado uma única vez. Se sentir importante, pelo que é e não pelo que proporcionava ou escondia ser. Era sim, um jovem belo, mas não reconhecia tua beleza. Belo no exterior, forte, altivo, esguio e mais belo ainda no que encontrava no coração. Doce, fraco, sensível.

Não ter que se preocupar com o trabalho, com as contas, com a chave, com o cheque. Ser sim, carregado pela paz que possuiu apenas quando era bebê, mas bem novo. Aos dois anos, lembrava já das tuas preocupações. Em deixar a mãe feliz, o pai contente, a irmã satisfeita. Logo depois, a professora orgulhosa, a família honrada e mais depois ainda, a parceira completa.

Foi logo e o depois que começou a ter os pensamentos, antes de dormir, como poderia matar uma pessoa. Ele não se incomodava, até se divertia. Porém, foi tomando conta, o seduzindo os aspectos mais sombrios de como poderia tirar a vida de alguém. Não era por maldade, pois não tinha ninguém em vista, era espontâneo, como pensar nas coisas que aconteceu durante o dia, no entanto, pensava em como a morte poderia chegar.

Por anos, pensava em enforcamentos por fio de nylon. Não queria e assim não via o sangue. Não visualizava as cabeças separadas do corpo ou pescoços mutilados. Apenas, o fio de nylon, simples como o de pesca, sendo encostado na pele... uma pele branca. Quando se sentiu incomodado com tantos pensamentos, pediu a Deus que o retirasse e assim aconteceu.

Passou o tempo, mais para a atualidade, ficava imaginando se os corpos, quando caísse de uma certa altura, ao passar por aqueles cortadores de batatas, desceriam em tiras como batata. Pensou em um cortador gigante, com lâminas afiadas, voltou a se divertir, pois nunca construiria um desse. Como, pois não tinha habilidades com metalurgia.

Acordou com o nó. Não queria ir para o trabalho. Não queria dizer oi para aquela com quem dormia. Não queria ver o bebê sorrindo. Percebeu mesmo que o fim estava tão próximo, tão palpável, tão verdadeiro. Se perguntava como um nó poderia dizer tantas coisas. Sabia que não passaria de mais algumas horas para tudo se concretizar, ou melhor, para tudo se diluir. Queria chorar, forçou as lágrimas. Não conseguiu. Foi para o banheiro, barba para fazer, não a fez, mas se sentiu incomodado com os pelos na cara.

Olhou para o genital. Sentiu indiferente quanto a ele, pois nem isso mais lhe proporcionava prazer pela vida. Abriu a torneira de água quente. Esperou que o vapor embaçasse o espelho. Gostava de ser ver embaçado. Com a ponta do dedo, escreveu com uma letra linda; sentido... sente isso... sem ter ido.... sem ter tido...

Prazer, também queria escrever no espelho embaçado, não havia espaço. Esse suposto epitáfio ficaria apenas na memória vaga e distante. Pensa no filho. Não deseja a mesma sorte. Sabe que não terá, pois não se esforça em agradar aos que envolve. Sorri singelamente por sentir-se orgulhoso do moleque.

A esposa. Não sabia dizer se a amou de fato. Não queria ser injusto ao tal ponto de relacionar a solidão que sentia, a companheira, tantas vezes gentil e envolvente.

Chega de pensamentos, é preciso a decisão. Toma um banho automático. Se enxuga, toca a pele com a toalha, sempre a notou macia e cheirosa. Agradeceu a todos por ela o tocar dessa maneira. Talvez a única coisa que o tocava sem o cobrar, e ele poderia ser ele. Sorri novamente, por ter tido um pensamento tão incoerente. Demora mais se tocando com a toalha amarela, do que o ritual do banho.

Coloca a roupa. O pensamento veio! O do fio de nylon, o do cortador de batatas, o impregna, porém vai ser passivo a eles. Não há mais o que fazer, apenas deixar o fluir. Quer que o pensamento o mate, e quem sabe para começar a se arrepender das coisas que não tenha feito. O impulso toma conta, o teu coração dispara.

Volta para o quarto, o berço do bebê ao lado, sente a respiração do filho. Olha para a mulher, cabelos tapavam teu rosto.

“ Querida, querida, me dê espaço na cama, hoje não irei trabalhar. Quero ficar aqui com vocês”

Buracos, fossas, talvez são tão importantes, quanto os vales e montes. Tudo é terra, pó, e tudo voltará a ser. Desde poderosas nações a simples países... tudo uma questão de tempo. Simples, como acordar cedo, e tapar um buraco. Ah, se faltar terra, não há problema, é apenas um buraco.

Fábio Piantoni
Enviado por Fábio Piantoni em 04/01/2016
Código do texto: T5500486
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