Memorias De Uma Boneca De Pano

O que se passara na minha cabecinha de boneca de pano, deformada pelos remendos grosseiros que me mantinham inteira... Eu nao era apenas um conjunto de trapos envelhecidos. Uma aura capaz de absorver sentimentos e emoções em sua total dimensão, era o meu enchimento.

Todas as manhas eu observava Mariana abrir os seus olhinhos, ainda grudados pela remela de uma noite mal dormida, em sua caminha de tábuas e tábuas. A olhava se contorcer como que tentando despertar seu corpinho frágil e esquelético. Mas aquela manha era especial. Toda aquela cena era mágica! Aquele brilho que resplandecia do rosto sofrido da menininha, ao descobrir o sol surgindo; o sorriso que lhe salta dos lábios, numa expressão angelical, ao perceber o sol tão tímido por detrás dos secos arbustos... emanavam paz. Ela o fitava por entre as brechas impostas ao seu telhado, ja inclinado pelo tempo, marcado pela miséria evidente de quem mora no sertão, abandonado pelos deuses da bonança, onde so liberam os sonhos. Mariana acordava para sonhar.

Eu podia sentir meu coração de trapos, acelerado em meu peito descosturado, e posso jurar ter sentido meu rosto emudecer pelas lagrimas que copiosamente caiam dos meus olhos de retalho preto. Ah! Minha garotinha, a escuridão que a vida te impôs, não te impediram de ver a luz de um novo dia!

_ Venha Lilica! Vamos! Eu a ouvia me chamar num tom celestial, e suas mãozinhas me levaram ate o seu colinho quente. E como quem lapida uma pedra preciosa, ela arrumava meus braços, pernas, cabelos, vestidos... Foi sempre assim. Éramos Mariana e eu em um mundo de faz de contas. Era uma vez um príncipe... Uma princesa... Um castelo... Uma bruxa... Foi a forma humana que ela encontrou para fugir da dura realidade, que lhe agredia não apenas o corpo, sufocava-lhe a alma de criança, num agreste esquecido por Deus. Mas a esperança de um final feliz a diferenciava dos outros pobres sertanejos.

Eu, agarrada aos seus braços, senti que ela flutuava tal a leveza de seus passos. Senti os raios de sol aquecerem meus trapinhos, ainda molhados pela friagem da madrugada. Nos distanciávamos daquele casebre de madeiras ocas, enfraquecido pelos cupins, determinados em destruí-lo. A fumaça do forno a lenha, vinda dos fundos, dava-lhe um toque de extrema pobreza. Tudo muito triste de se ver. Não tinha o que comer, beber ou vestir... Nem mesmo pelo que lutar ou morrer. A morte se pos de pé, abriu o seu manto e marcou os seus. Enquanto a vida, á morte deu a outra face.

E eu ali, em meio a tanta desgraça, imóvel como a qualquer brinquedo e feliz como a nenhum outro. Tínhamos uma a outra. _O que mais iria querer alem do amor da minha Mariana? Pensei eufórica.

Mais adiante ela parou, colocou-me no chão embaixo de um arbusto seco, recostou-me numa pedra e sentando-se ao lado sussurrou: "está na hora de partir". Nao havia tristeza em seu olhar. Suas palavras saiam dos seus lábios, misteriosamente rosados, como musica; assim como sua pele, sem o registro da privação e sofrimento, cintilava! Era o rosto de um anjo.

Ela parecia me entender. Abraçou-me num gesto de consolo, e se afastou a caminho do infinito, na estrada do sol.

Mariana! Mariana! Eu soluçava ao abrir meus olhos e ver estirado ao lado o corpinho sem vida da minha garotinha. Os olhinhos estáticos eternizavam o seu ultimo amanhecer.

Estava chegada a hora do seu final feliz. Hora de dar adeus a injustiça, a miséria, a indiferença dos deuses, ao descaso dos poderosos, a todas as perdas que marcaram os poucos anos de sua existência em um mundo medíocre, onde não se escutam os lamentos, não se enxerga a necessidade alheia; porque os interesses estão voltados para dentro de si mesmos, a busca do suprir as suas próprias ânsias de poder e gloria.