Estômago de medos - Final 1

Não podia ser coincidência! A impessoal secretária do Dr. Carlos acabara de comunicar-me que a próxima consulta seria no endereço novo. Na mesma rua, prédio, bloco... um andar acima das minhas lembranças.

Anotei, aguardei-a confirmar dia e horário e se despedir. Mecanicamente proferi um “adeus” dissonante e inadequado, assistindo pensamentos sendo arregimentados dentro de mim em preparação para a batalha: o medo estava chegando!

A data foi surgindo no calendário de forma lenta, em contraste com a frenética movimentação presente numa mente que voltava a dar sentido a uma vida descompassada. Lembranças perdidas nas quais via-me falando frases geradas de outros “eus”, saindo abruptamente da minha boca, assombravam-me. E aquele segredo ia lentamente sendo desenterrado. Amanhã!

Acordei do vazio. A casa também estava estranhamente vazia. Não trabalharia naquele dia, eis a razão do despertador figurar adormecido. Um agudo cansaço mental transportou-me para a portaria do prédio. Estava transfigurado! A modernidade tinha marcado seu pincel, mas não conseguiu ofender a pintura ainda presente na minha memória. Estaticamente permaneci ali, fazendo um trabalho de recuperação até que uma senhorinha me cutucou, de volta à realidade ouvi sua voz firme:

- Você estava tal qual uma estátua, nem piscava. Fiquei preocupada!

Surgiu o sorriso mais afetuoso que consegui arrancar de um ser que começava a reconhecer e caminhei apressadamente em direção aos elevadores. Senti olhares acompanharem-me e procurei agir de forma natural. Terceiro andar. Elevador novo, espelho grande, rosto bem conhecido.

Dr. Carlos era bem íntimo do meu estômago! Perdi as contas de quantas endoscopias já tinha colocado em suas mãos. O mesmo ritual: cumprimento, sorriso, convite para sentar - e ele o faz, igualmente, de forma lenta, passando o scanner. Lê minha mente na maior cara de pau e dispara o tradicional:

- Como tem passado?

- Sem novidades. Os sintomas vão e voltam ao sabor do vento. Acho que nem conseguiria mais viver sem eles.

O que era para ter uma certa graça fez aquele sisudo médico lançar-me um profundo olhar. Deve ter acionado o scanner novamente, para conferir alguma informação, pois os segundos respiraram lentamente. Voltou ao exame e desfolhou-o de forma anormal, despretensiosa. Receituário, caligrafia peculiar, legível... remédios e dosagem igual. Destacou a folha, dobrou-a ao meio e projetou a mão. Quis pegar a folha, mas ele não a largou. O olhar, o scanner, novidade no ar!

- Posso lançar um desafio?

Meu olhar e expressão o incentivaram a continuar.

- Deixe o sabor do vento dissociar a mente do estômago. E viverá sem os sintomas. A receita está aqui, mas só entre na farmácia depois de enfrentar seus medos.

Scanner bem calibrado o dele, médico vidente filho da puta! Agora pude pegar a receita e observei que estava escrito “TENTE!” no verso em letras garrafais. Virou mágico também? Quando escreveu aquela palavra?

Levantei-me e com um cumprimento rápido saí do consultório. Não lembro de ter ouvido qualquer palavra dele. Será que estava me assediando? Mundo estranho!

A mensagem estava dada, produzindo efeitos numa mente incitada. Paguei rapidamente a consulta e precipitei-me para o elevador vazio. Alguém apertou o segundo andar: eu!

De frente para uma porta igual a todas naquele corredor, ouvi vozes. A placa que identificava aquela voz, que ia crescendo em intensidade, não mudara. A porta abriu-se e alguém apressadamente foi em direção às escadas. O som dos passos perdendo-se nos degraus marcou o compasso do encontro com quem ainda segurava a porta aberta: olhares e mentes. Silêncio. Tossi, acredito que tenha estancado a respiração.

- Oi, como vai? Estou indo num médico, errei o andar. É no terceiro! Ato falho...

Quem falou ato falho???? Calma, calma, calma! Sorriso amarelo invade meu rosto.

- Como está vendo continuo no mesmo lugar! Estranho você perdendo-se desta forma... já eu ando perdendo-me em investimentos, adquiri duas salas. Não é meu perfil, acabei decidindo vendê-las e achei muita coincidência o Dr. Carlos interessar-se por uma delas.

Minha cara de ponto de interrogação derivou num esclarecimento:

- Um dia você pediu-me para ir à farmácia, na receita observei o nome do médico, o sobrenome dele é inesquecível. Como essa tua expressão...

Quem fica olhando o nome do médico numa receita que não é sua? Qual o remédio que você toma para a memória? Porque Lowketti é inesquecível? O que havia naquele olhar que já não hipnotizava-me?

-Estou em cima da hora, depois volto!

Enfrentei meus medos por hoje! Hora de ir embora, tentei! Aperto o botão para chamar o elevador e a porta instantaneamente abre-me passagem. Estava ainda naquele andar. Entrei, virei vagarosamente para trás e a porta fechou com pressa. Procurei-me no espelho e o encontro foi brindado com uma respiração bem profunda. A porta abriu e eu só queria voltar a sentir o calor da rua.

- Está tudo bem? O elevador não saiu deste andar...

O elevador não é de última geração, não tem scanner, não ouve ordens nem adivinha pensamentos! Ou tem poderes sobrenaturais...

Final 1 ..................................................................................

Alcancei a porta, em poucos segundos o elevador começaria a gritar.

- Aquela carta nunca teve importância. Todas as frases só apontavam para um caminho que nós dois teríamos que percorrer. Coube-me a parte cruel da história. E até hoje forço-me a acreditar que fiz a coisa certa.

Um apito estridente compôs a trilha sonora de um beijo curto e definitivo. Sorrimos. Recuei, apertei o botão da portaria e a porta fechou. Na primeira lixeira joguei a receita e todos os medos que marcaram esta história. Um segredo estava para sempre lacrado no meu estômago.

Fernando Antunes
Enviado por Fernando Antunes em 24/01/2016
Reeditado em 26/01/2016
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