O grito que ninguem ouve

Estou sentado em à beira da cama. A luz dura da lâmpada fluorescente ilumina o quarto. As paredes brancas e impessoais. Corro os olhos pelo quarto. Nada aqui é meu, ainda que sejam as minhas coisas. Não estou neste quarto, minha alma não está aqui, só meu corpo. Não há empatia entre nós.

Na televisão de 20” está passando um programa idiota sobre um bando de imbecis presos numa casa. Macacos em uma jaula global. Se humilhando e se exibindo por dinheiro. Como a humanidade pode cair tanto. Minhas roupas estão cuidadosamente arrumadas sobre a cadeira do lado da mesa onde está minha mochila, meus óculos e meu crachá. Um par de meias novas sobre a s botas.

É preciso que a impressão de ordem seja mantida. É primordial que pareça que estava pronto para mais um dia no vale de lagrimas que é meu serviço. Onde a casca vazia de meu ser conta as horas ao lado de outros simulacros de vida. Onde ninguém me nota apesar de todos conversarmos uns com os outros.

Minha casa não é aqui. Aqui é só onde durmo. Descanso meu corpo enquanto minha alma grita pelo meu lar. Olho pela milionésima vez para o frasco. Medo, tristeza, angustia. Mas principalmente tristeza. Uma tristeza que consome tudo. Enregela minha alma e destroça meu espirito. Sinto a respiração difícil, mas sei que não é físico. Uma cascata de lagrimas cai mais uma vez de meus olhos. Vejo seu rosto na tela brilhante do celular e choro copiosamente.

Meu coração dói. Não é física a dor, mas dói mais do que se fosse. Gostaria tanto que um infarto viesse. Mas nem esta dádiva me é concedida.

Mais um copo da vodca vagabunda que comprei por uma merreca. O liquido desce queimando. Mas não traz o tão propalado alivio do esquecimento.

Olho na tela do celular, os olhos dela me fitam com ternura. Ternura de um tempo que não existe mais. Em meus ouvidos ainda estão as palavras dela. Frias e cortantes. A decepção em sua voz, a tristeza, a mágoa. A milhares de quilômetros de distancia suas palavras me cortam como laminas afiadas. A cada palavra dela minha alma se abre num corte profundo como o oceano. A cada silencio meu coração se contorce.

Mas mais doloroso que suas palavras é a certeza de que a culpa é minha. O erro é meu. Que mereço tudo o que ela diz. Quando ela diz “Adeus nunca mais me procure”, sinto o universo esfriar.

Eu choro, imploro, vocifero... Mas o telefone já está mudo. O numero dela não atende mais. As mensagens não são entregues, seu perfil na rede não existe mais.

Dia após dia eu definho. Sorrindo para todos, sangrando por dentro. Não há mais a aquém recorrer. Assusto-me ao ver como nunca realmente tive alguém além dela. Como todos são tão superficiais. Todos me veem. Ninguém me enxerga. Todos me ouvem, mas niguem me escuta. Alguns até notam que algo mudou.

Mas quem se importa? A mascara que carrego lhes satisfaz.

Só ela me via de verdade. Só ela me conhecia. Só ela ouvia cada sussurro como se fosse um trovão retumbante. Nunca precisei mais que um sussurro para que ela me ouvisse e me entendesse. Hoje minha alma urra mais alto que vinte bananas de dinamite. Nas ninguém ouve. Ninguém se importa. Só ela se importava.

A saída é clara. A dor é imensa. Sem ela o universo não faz sentido.

Dias pesquisando na internet a ferramenta ideal, o transporte adequado para a minha ultima viagem.

Não posso partir de forma atrapalhada. Todas as contas estão certas. Transferi o pouco que tenho para sua conta. Não pode parecer intencional, o seguro não pagaria se assim fosse. Ela nunca me cobrou nada material. Dizia que estar comigo bastava, mas eu não entendi e joguei fora. Troquei tudo que tinha por nada. Que direito tenho de lhe implorar algo. É muito pouco o que lhe deixo, minha lembrança conspurcada e os seguros de vida que fiz pensando em protegê-la das intempéries da vida.

Arrasto-me por dias e ninguém nota minha tristeza. Minha alma sangra e ninguém vê. Meus olhos se apagaram, mas ninguém sente falta. Não há mais alegria em minha voz. Mas que importa? Ninguém está ouvindo.

Sem ela o que resta? Só o vazio. Frio e escuro.

Maldigo-me pelo meu erro. Perdi tudo por nada. Por um impulso animal e sujo. Mereço o esquecimento.

Já verifiquei as apólices de seguro. Não é muito, mas ajudará.

Quem imaginaria que a passagem seria tão fácil de achar. Envio uma última mensagem.

“Desculpe-me. Eu sempre vou te amar.”

Apanho os comprimidos que deveriam regular minha pressão arterial. Tomo uma dose 20 vezes maior que o usual, não antes de ter o cuidado de pulveriza-los para acelerar a absorção e reduzir as chances de conteúdo estomacal, na eventualidade de uma possível necropsia. As embalagens foram espalhadas por toda a cidade. Ninguém suspeitará.

Agora uma garantia. O site médico diz que acima de 8 gramas o analgésico famoso pode ser fatal para um adulto. Tomo 80 gramas. Ele causará a falência hepática, se os beta bloqueadores não fizerem os serviço antes.

Corro os olhos pelo quarto. Nenhum sinal de anormalidade. Se eu mesmo não soubesse não imaginaria nada de errado. Um último gole de vodca. Vai potencializar os efeitos dos medicamentos.

Saio do quarto e com cuidado dispenso a garrafa vazia na lixeira coletiva do alojamento. Sinto-me um pouco tonto. Mas ainda não são os remédios. É a vodca.

Volto ao quarto e ligo o ar condicionado no máximo. O frio vai forçar o sangue para o interior do corpo acelerando o processo.

Sinto meu pulso. As pulsações estão mais fracas e lentas.

Deito e forço o rosto num esgar de dor, esta parte é mais difícil. Tenho que manter esta expressão e torcer para ela durar depois que eu apagar de vez. Seguro o braço esquerdo com o direito como se uma dor lancinante me acometesse.

Minhas vistas estão turvas. Forço mais o rosto. A expressão é importante. Concentro toda minha vontade nos músculos faciais.

Sinto que vou apagar.

Um último pensamento.

“Adeus, mina Luz. Vou te amar para sempre. Perdão” ....

.

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A faxineira do alojamento abriu a porta na segunda às 11h35min e já ia voltar atrás pedindo desculpas quando o viu na cama. Mas a expressão de dor no rosto a fez parar.

Ela o tocou de leve, mas recuou enojada ao sentir o corpo gelado. Chamou a medicina da obra e a segurança. Mas já era tarde. Já era tarde a muito tempo.

O medico da obra foi taxativo.

“Ataque fulminante vejam a expressão de dor e como o pobre coitado esta segurando o braço esquerdo.”

“Eu o conhecia sempre alegre, pena. Sempre estava de bom humor. Pelo menos deixou a esposa com uma bolada de seguro.”

A faxineira fez um sinal da cruz.

Longshot
Enviado por Longshot em 04/02/2016
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