Kombi Amarela

O evento estava lotado. Executivos temperamentais, especialistas do sabor, chefs iniciantes, estudantes ambiciosos, críticos. Todos buscavam as últimas novidades para o setor da alta gastronomia e, de sobremesa, aumentariam a abstrata rede de relacionamentos. Igor, embalado em terno de grife moderna, caminhava elegante entre o mostruário de cafeteiras italianas e as opções de coifas anti-ruído quando reconheceu o rosto displicente perdido no corredor.

- Marcelo???

- Opa... Igor. Tudo bom?

- Rapaz, a última vez que nos vimos foi na aula de culinária indiana, no segundo semestre do curso.

- ...É.

- Você devia ter visto a formatura da nossa classe de gastronomia. Serviram pato recheado de amoras turcas banhadas em molho de lima da pérsia e óleo de gergelim.

- Imagino...

- Pena que você preferiu abandonar o curso pra viver daquele seu negócio. Mas também, cá entre nós, você nunca foi sofisticado.

- ...

Desde o primeiro dia de aula Marcelo causara estranheza. Não que tivesse algum órgão fora do lugar ou traços sinistros. Além de ser o representante mais humilde do curso, produzia cachorros-quentes durante a madrugada para serem vendidos em sua Kombi adaptada. A postura cabisbaixa contribuíra para que seus colegas, todos herdeiros da alta gastronomia paulistana, humilhassem sua presença e suspeitassem das suas habilidades. Poucos reconheciam o senso apurado de Marcelo para transformar receitas simples em sabores enigmáticos. O próprio cachorro-quente discriminado surpreendera um professor, que nunca ousou divulgar publicamente seu parecer digestivo.

- Mas e aí? Ta fazendo o que nesse evento? Acho que aqui não tem nada que combine com... humm... você!

- Eu vim...

- Aliás! Já falei que inaugurei meu restaurante novo?

- Er... não...

- Montei um espaço requintado no Jardins com receitas que unem a sofisticação da culinária francesa com ingredientes contemporâneos.

- ... que bom...

- Toma aqui o meu cartão! Mas se for aparecer peça um terno emprestado. Lá é muito bem freqüentado e você seria escorraçado pela segurança se tentasse entrar assim.

- Mas que...

- E você? Continua vendendo cachorro-quente com sua Kombi amarela?

- Continuo sim.

- Nossa, hein! Isso que é bom gosto.

- Como assim?

- Nada, não, Marcelo. Boa sorte no seu negócio.

- ... tá.

- Você vai precisar.

Igor ajustou a gravata de seda e despediu-se de Marcelo. Não tinha mais tempo a perder com um vendedor de salsichas protegidas por pão vagabundo e precisava ir para casa se arrumar. Naquela noite seu restaurante estaria recheado de celebridades e sua presença impecável seria absolutamente necessária.

Já no restaurante, Igor conversava com o pianista sobre o repertório da noite, conduzia as últimas instruções para a equipe de chefs e gargalhava sozinho ao lembrar do moribundo ex-colega de classe. “Cachorro-quente na Kombi! Bela carreira!”, repetia enquanto verificava a temperatura da adega.

Curiosamente, passavam-se as horas e o famoso restaurante não recepcionava nenhum cliente. As mesas permaneciam vazias, o pianista contava os minutos para ir embora e os chefs contavam histórias eróticas dos tempos da adolescência. Igor alisava o cabelo modelado com gel e consolava-se: “Só pode ser o trânsito!", enquanto aumentava a vazão da cascata de champagne.

Um estouro interrompeu seu chilique. Acelerou os passos em direção à rua e percebeu um grupo, elegantemente produzido, limpando os cantos da boca com guardanapos baratos. Reconhecendo seus convidados aproximou-se do falatório, que se mostrava confuso e quase subliminar. Enquanto alguns elogiavam o tempero inesquecível que acabaram de provar, outros especialistas discutiam quais ingredientes formavam aquela sublime emulsão de sabores. Apavorado e confuso, Igor despertou com novo estouro, dessa vez mais distante. Imediatamente seus olhos foram atraídos para um veículo barulhento que fugia pela avenida em alta velocidade.

Podia jurar que era uma Kombi. Podia jurar que era amarela.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 10/07/2007
Reeditado em 14/07/2007
Código do texto: T559033
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