História de sem nome

Eu sou uma menina e estou sentada na soleira da porta. A porta dá para o curral onde meu pai, todas as manhãs, tira o leite com o qual minha mãe e mais uma ajudante fazem queijo para vender na feira aos domingos. Neste momento, eu vejo meu pai e penso que ele é um velho. Enquanto pastoreia o gado, mais precisamente quando amoja as vacas, usando seu chapéu de palha, sua calça de algodão tingida de marrom e sua camisa de algodão cru bem surrada, eu o vejo ali diante dos meus olhos, em constante movimento. É um velho. Ele tem quarenta anos. E quarenta anos é muito tempo para uma menina de sete. Seus cabelos e seu bigode, antes negros, já se pintaram aqui e ali de branco. É bem difícil de ver nitidamente seus cabelos por causa do chapéu que nunca lhe sai da cabeça. Daqui, da soleira da porta, eu observo o movimento das pernas e braços de meu pai. Magro e pálido, seu rosto sua muito por causa do sol quase escaldante. Ele levanta o chapéu e ajeita o que ainda lhe resta de cabelo. O chapéu volta à cabeça em poucos segundos. Foi o tempo de passar a mão direita sobre a testa e fazer voltar o cabelo, para prendê-lo e mantê-lo escondido sob o chapéu.

Há tempos venho tentando escrever meu pai; penso, sinto que escrevendo eu possa recuperá-lo. Reconstruir sua imagem quando ainda era jovem e eu pensava que já estava muito velho. Faz muito tempo que tento escrever, todavia não escrevo nem de ouvido. Faço garranchos de palavras e frases; dedilho alguns períodos meio caducos, compostos de uma nota só. Escrever me ajudaria a reconstruir meu pai e a minha vida. Nem sei mais quando foi que perdi o fio da minha vida. Queria muito poder levar o fio da minha vida pra passear e ainda construir qualquer coisa que fosse boa, duradoura, produtiva e profícua. Algo de valor. Digno de apreço. Um desenho, uma pintura, um livro, um conto, uma poesia. Qualquer coisa digna de ficar na História. Shakespeare disse que não importa o que pensemos, o melhor é expressá-lo com boas palavras. E ele tem muita razão. Boas palavras são verdadeiras preciosidades. Por vezes eu penso que minha vida é inteiramente branca. Não, branca não. Branca já seria alguma coisa, uma cor sem cor, mas uma cor. Acho que minha vida é transparente. Nula. Ou quase nula. Tudo que fiz é um não feito, um nada.

Eu já tenho mais de meia centena de anos e nunca construí nada de valor. Quando tento reconstruir meu pai, sentada na soleira da porta da fazenda onde nasci, vejo-o tão mais jovem do que eu sou agora. Ele era velho para mim quando minha vida era só esperança e eu nem sequer sabia grafar palavras.

Eu fico observando meu pai em sua camisa surrada; e eu nem sei que é surrada porque tudo na nossa casa é surrado. Móveis, roupas, calçados... Tudo é surrado. Até meu caderninho de escola é surrado. Ele não tem espiral como os das outras meninas. O caderno da filha do médico tem espiral e deve ter umas duzentas folhas. E o da filha do dono da loja de sapatos é um luxo, até brilha. Às vezes eu penso que a minha professora não gosta de mim porque eu sou pobre e filha de roceiro.

É verdade. A professora sempre dava mais atenção aos filhos dos ricos, perguntava “como vai seu pai?” “E sua mãe, tá boa?” Jamais perguntou de meus pais. Enquanto observo meu pai, fico imaginando uma maneira de lhe dizer que preciso de dinheiro pra comprar um livro. A professora foi enfática e disse que todo mundo precisa do livro na próxima aula; e, se eu não o comprar, ela não vai me deixar assistir às aulas, penso em dizer isso ao meu pai. Talvez assim ele arranje o dinheiro pra comprar o livro. Mas eu me retruco: e se ele não se importar que eu falte às aulas, que eu saia da escola? Tal ideia me apavora. Sem estudar, como vou aprender a escrever, como vou construir a minha vida e salvar meu pai em minha memória? A simples ideia de não poder aprender a ler e escrever me angustia enormemente. Como lhe dizer que preciso de dinheiro? Com efeito, preciso do livro, mas somente poderei tê-lo se tiver dinheiro. Como lhe dizer que minha vida - e até a dele, em minha memória, - depende desse dinheiro. Meu pai não demonstra se importar com a escola. Minha mãe evidencia sua preocupação a todo instante e fica muito brava se eu cabulo aulas; embora esse seja um pecado que raramente cometo. Primeiro, porque eu gosto da estudar, da professora, apesar do claro interesse dela pelos alunos ricos. Depois, porque gosto muitíssimo das letras e das palavras. Às vezes eu penso que elas, as letras e as palavras, representam tudo o que eu tenho na vida. Em verdade, eu creio que seja verdadeiro esse meu pensamento. As palavras são para mim uma fortuna, mas elas quase sempre me escapam. As letras e as palavras são personagens amigas com as quais convivo e brigo, como convivem e brigam todos os verdadeiros amigos.

Será que meu pai sabia disso? Ele estava sempre tão preocupado e ocupado com a lida no sítio: plantações, gado, cavalos, porcos, galinhas. Alimento nunca nos faltou. Mas dinheiro pra comprar livros, e era o que mais queria, não havia.

É fim de semana, por isso estou no sítio. Minha mãe ficou na cidade, lavando e costurando roupas pra fora. Uma luz se acende em minha mente e eu sinto que salvará a minha vida. Vou pedir o dinheiro de comprar o livro pra minha mãe. Ela quer muito que eu estude. Ela nunca estudou e faz o que pode para que os filhos estudem.

Minha mãe foi minha salvação. Não posso dizer que não paguei um preço. Paguei, claro. Lavar as louças e varrer a casa. Mas isso era pouco diante de um livro e de toda a possibilidade de construção que ele daria à minha vida. Comprar um livro novo... expectativa ardente... Comprar um livro novo. Um livro não surrado. Novinho! Livro cheirando a livro novo. Fui eu mesma quem o abriu. Desvirginei-o. É impossível descrever tamanha alegria. Esta é a primeira lembrança de alguma coisa não surrada que tenho. Meu livro de Histórias. Novo. Lindo! Histórias para ler e reler. Ler e escrever. Histórias de Tia Nastácia, o autor se chama Monteiro Lobato.

Minha mãe gastou todo o dinheiro que ganhou durante a semana para comprar aquele livro. Não sei por que eu não senti remorso algum por saber que todo o dinheiro de minha mãe fora trocado por um livro. E eu nem sabia ler ainda. Ninguém na sala sabia. E ele me pôs a coberto, posto que a primeira história lida pela professora foi O bicho manjaléu. Terminada a leitura, a professora perguntou se todos tinham entendido bem o que ela lera, todas as palavras. E justo as meninas ricas levantaram as mãos dizendo que não sabiam o significado da palavra gamela. Eu levantei a mão e expliquei que era uma vasilha feita de madeira, mas que também podia ser de barro, e disse que no sítio de meu pai havia algumas gamelas onde meu pai dava comida aos porcos. E naquela manhã, todos na sala se voltaram para mim e me ouviram. A professora me elogiou pela primeira vez. Disse que minha explicação fora clara e precisa. A frase dita pela professora ecoou nos meus ouvidos por dias, embora eu nem tivesse entendido o que ela dissera com “explicação clara e precisa”. Clara, eu entendi, mas não entendi o que a palavra “precisa” estava fazendo ali. Pra mim, precisar era sinônimo de necessitar. Não entendi, mas o fato de a professora dizer em tom elogioso aquela palavra confusa já me agradou muito. Contei pra minha mãe e vi seus olhos brilharem. Era alegria clara, límpida como as lágrimas que lhe escorreram pelas faces. “Valeu a pena deixar de comprar carne na semana passada”, disse mamãe, voltando-se de costas pra mim e dirigindo-se ao fogão.

Meu pai morreu quando ainda nem tinha completado sessenta anos. Hoje, eu penso que ele morreu muito jovem. Minha mãe durou um pouco mais, morreu aos oitenta. Mamãe era um bicho forte e difícil de morrer. Não sei porque eu nunca tentei reconstruir minha mãe. Pra mim, ela sempre foi total, completa. Tinha coragem pra dar a muito homem. Era onipresente. Não sei como ela conseguia fazer tudo e ainda participar da vida dos filhos. Sete filhos. Sempre acreditei que minha mãe podia tudo, especialmente durante a minha infância e adolescência. Ela sempre resolvia o resolúvel e o irresolúvel. Era onipotente. Trabalhava até tarde da noite e ao amanhecer já estava na cozinha preparando o café. Cuidava de tudo e de todos com amor e atenção. Agora, neste exato instante, eu daria tudo para tê-la novamente andando pela casa, cuidando de tudo. Eu certamente lhe ofereceria a ajuda que não lhe ofereci tantas vezes. Eu lhe secaria as lágrimas que nunca sequei porque nunca lhe prestava a devida atenção. Se eu pudesse, eu lhe pediria desculpas por tudo que fiz e tudo que não fiz.

A minha história continua em curso. A dela – a minha mãe - é finda. E eu não sei como continuar a minha história. Houve um tempo em que eu pensei que podia escrever minha vida e a vida de meu pai, para recuperá-lo nas minhas lembranças. Agora, já não sei se é possível. Não tenho palavras e minha vida estagnou. Restam-me claras, “precisas” e suaves as lembranças de minha mãe, que ainda me dão acalanto nas noites insones

Sena Siqueira.

Maio de 2015.

Sena Siqueira
Enviado por Sena Siqueira em 05/05/2016
Reeditado em 28/10/2020
Código do texto: T5626100
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