Instantâneo

Toc, toc, toc... O salto do mocassim de Marta cutuca as tábuas do piso com insistência. Cruza e descruza as pernas. Não vê a hora de sentar-se à cadeira de veludo. Espia pela fresta da cortina que divide o atelier em dois ambientes. O velho ainda está lá. Testa franzida, ele se remexe. A mulher ao lado ajeita-lhe um lenço branco no pescoço, corrige-lhe a posição dos óculos. A pólvora não chega a queimar-se para o primeiro estouro do flash. Em um segundo, o velho desfaz o cuidado. A voz por baixo da capa vermelha grita instruções. Nada. Um sorriso, a mulher pede, um único sorriso para a filha que se casará na América, ela insiste. O velho reluta, distrai-se.

Marta invade a sala. O enorme manto preto disforme que ela veste confunde-se com a cortina, ao cruzar a porta. O fotógrafo descobre a cabeça para vê-la. A moça de longos cabelos negros, desgrenhados sobre o pescoço, lembra mulheres de fotografias antigas. O tom da pele insinua o sépia de papéis fotográficos do século passado. Dá-lhe aparência adoentada. Por alguns segundos, ele se abstrai do velho sentado na cadeira à frente. Num rápido devaneio, emoldura a garota.

─ Caso-me amanhã. Posso ser atendida agora? - A mentira sai num tom de pouca convicção. Marta estava de casamento marcado, mas para a próxima semana. Ela devolvera o tapa que a avó lhe dera no rosto, comunicando que se casaria com o vizinho do outro lado da rua. Marta sempre fora dada a desaforos. Para a avó, andar sem roupas íntimas por baixo do manto é que era novidade no comportamento da neta. Marta saíra naquela manhã disposta a mais uma das suas: eternizaria em papel fotográfico o motivo do escândalo de logo cedo.

─ Este senhor não está muito à vontade. Posso tomar o lugar dele? ─, ela insiste. Com o olhar, o fotógrafo repassa a decisão ao casal. O velho lança um meio sorriso, já começa a esforçar-se para erguer o corpo da cadeira, quando a voz da mulher o interrompe.

─ Meu marido tem pressa─, ela diz, desafiadora, empurrando-o contra o assento. Fora um sacrifício convencê-lo a vir ao atelier do fotógrafo. Mas ela queria atender à filha que, na última correspondência, insistira em ter uma foto recente do pai para o porta-retratos de bronze com o qual o marido a presenteara. Ao velho, não agradava a idéia de imaginar-se num instantâneo com um sorriso de toda a boca para o latino que levara a filha dele de casa.

─ Homem, só um meio sorriso, para não deixar a menina com o coração apertado── negocia o fotógrafo. A arcada do velho parece metálica, a boca se franze em desgosto. A esposa belisca-lhe as bochechas para corá-las.

─ Tudo bem. Vamos acabar logo com isso─, diz o velho, encenando um sorriso convincente. A mulher faz sinal para o fotógrafo, cuja cabeça desaparece por trás da caixa de madeira. Marta, retira-se do alcance da câmera. Só a pólvora estourar e ela terá para si a cadeira de veludo. Imagina-se em poses sensuais, olhares descarados, gestos provocantes e tudo o mais que possa ruborizar a avó. Exporia as fotos ampliadas, uma a uma, pelos corredores da casa.

Enquanto a esposa orienta o fotógrafo, Marta observa o velho, que sorri com gosto para a lente. Ela desconfia. Ele está com o cenho cerrado. Marta pensa em avisar aos demais. Desiste. Como poderia recriminá-lo? Logo, logo, estaria a usar aquela estranha caixa de madeira para fazer o mesmo.

Andréa Farias
Enviado por Andréa Farias em 13/07/2007
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