Saborosa presença

O cheiro do forno denuncia. O pão está quase pronto. A chaleira chia no fogão. Cozinha iluminada. Xícara virada sobre o pires. Suco de bergamota na jarra, queijo da colônia com a casca esbranquiçada, nata, melado, chimia de goiaba na tigela de vidro. Daniel tem acordado com aroma do café filtrando no saquinho de pano. O resto da família não dá sinal de vida.

Sobre a pia, garrafa térmica sem tampa e cuia de cabeça para baixo. Daniel abre uma fresta da porta que dá para o quintal. Espia o canteirinho de temperos. Encontra a erva mate úmida já depositada no mesmo montinho sobre a terra. Nada de conversas sobre profissão, cotação da soja, política e futuro: o avô já saiu para a lida.

O sol ainda não derreteu a geada sobre o pasto. O vento sacode os panos de prato no varal. Daniel se arrepia. Esfrega uma mão na outra. Aquece-as no bule de ferro, enquanto o carrega para a mesa. Estala os dentes devorando fatias de pão com doce e salgado por cima. Não há razão para cuidar os modos, a senhora que prepara a comida sempre desaparece enquanto as visitas estão por perto. Um tanto “chucra”, na opinião do avô. É como são chamados os tímidos no interior. Cerimônia demais para a família do dono da casa. Apesar de que, desde a morte da mãe, aquela era a primeira temporada de filho, esposa e netos na estância em São Luiz Gonzaga. Vieram para a segunda missa em memória da falecida. Decidiram ficar um pouco mais e retornar à capital no mesmo dia da semana em que chegaram.

Assim que sorve o último gole da xícara, Daniel deixa a cozinha. Volta a dormir até o assoviar da panela de pressão. A senhora entra, porta a dentro, secando as mãos num pano de prato. Já estendeu as roupas do tanque, varreu as folhas da figueira. Ela empilha os potes, limpa os farelos, lava louça. No começo, esperava todos comerem para fazer o serviço. Logo, percebeu que a primeira refeição dos dorminhocos coincide com a segunda refeição da casa.

Quando retorna da lavoura, o avô encontra o chimarrão montado no mocho que fica no alpendre. Uma garrafa de água depois, as travessas estão sobre a mesa da cozinha. Panelas de ferro fervilham na chapa do fogão à lenha e a senhora some mais uma vez. A sobremesa, ela deixa no balcão lateral. Apenas um tipo por almoço. Goiabada com queijo, doce de leite, compota de laranja, ambrosia e agora o purê de abacate que o avô gosta. Ele usa a casca da fruta como cumbuca. Sai com ela nas mãos, raspando o restinho do fundo, antes de seguir para o celeiro.

Ela tempera feijão com folhas de louro e alecrim. É tudo o que sabem os pais de Daniel. O cheiro invade o quarto, junto com a claridade da casa, iluminada pelo sol alto. Eles a vêem de relance, enquanto colhe uvas para a cuca que saboreiam com café preto, embaixo do abacateiro. O avô chega dirigindo o trator novo que a safra de soja rendeu. Uma colheitadeira robusta da John Deere. Os faróis acesos ajudam o único bico de luz do lado de fora do casarão. O avô lava as mãos no esguicho da horta. Daniel enche de café a caneca de alumínio, que o avô esvazia num só gole. A mosca voa ao redor dos últimos pedacinhos de cuca, esquecidos na bandeja. O aroma de galinha caipira ensopada escapa pela janela. A mesa está posta do lado de dentro.

Andréa Farias
Enviado por Andréa Farias em 13/07/2007
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