Chegadas e Partidas

O tapete verde colore os vidros da caminhonete. Plantações sobem colinas, contornam riachos, quase invadem a beira da estrada de chão batido. Daniel impressiona-se. Há quase uma hora, soja é tudo o que vê. Que fim tiveram os milharais? Daniel já dirige há cinco horas e quase não os viu. A paisagem está diferente dos tempos em que percorria aquelas trilhas na carona da bicicleta da avó. São Luiz Gonzaga entregara-se à monocultura. Agora, somente soja transgênica.

A estância da família é retirada da cidade. “Para fora”, como ainda se diz. A avó detestava manobrar a direção da Veraneio 1965 pelas estradas sinuosas das proximidades. Por isso, quando o leiteiro ganhou o fusca de cor gelo na rifa da igreja, ela tratou de fazer uma oferta irrecusável pela bicicleta de entregas. Era uma Caloi Barra Circular, meio marrom de ferrugem, do tempo em que o freio ainda não era no guidão. Com ela, a avó pedalava para o Clube de Mães, a Sacristia, a escola de Daniel. O neto era o co-piloto. Falava do marido, de comida e bordado, ria sozinha, passava sermão e ensinava modos ao garoto. Carregava no “e”. A voz gritada. Um timbre meio rainha do rádio. As frases emendavam-se. Daniel, às vezes, não resistia: cochilava agarrado ao selim. Ela fazia zigue-zague para que acordasse. E seguia falando.

A lembrança conforta. O celular interrompe. Vibra sobre o banco lateral. O pai, telegráfico, quer saber se Daniel ainda demora. - Em dez minutos estou chegando - , ele troca a marcha e pisa o acelerador com mais força. Tem as mãos firmes sobre o volante para estabilizar a caminhonete. Os pneus deixam para trás uma nuvem de poeira avermelhada. A mesma que se acumula nos retrovisores, nos solados dos sapatos e sobre a camisa preta que veste. Não gosta do preto, mas a tradição da cidade exige que o luto seja demonstrado.

O pórtico “Estância Fontana” aparece após a curva. Mais à frente, o casarão de pedras cinzentas arredondadas desenha-se num declive do terreno. Os carros da família estão estacionados ao redor. Daniel desliga o motor. Debruça-se sobre o volante. Observa pelo vidro da caminhonete.

O pai está sozinho do lado de fora da casa, sentado no toco, junto à soleira da porta. Cigarro apertado entre os dedos. Traga com força. Solta a fumaça devagar. Acena a Daniel com a cabeça. Aponta para a porta. Estão todos lá dentro. Segura o queixo com a mão, cotovelo apoiado no joelho. Contorna uma lajota do piso com o pé. Não é homem de lágrimas. Coluna desalinhada; olhos opacos; rugas da testa amontoadas sobre o olhar. Encharca-se por dentro.

Daniel desce da caminhonete para abrir a porteira. Apenas um canudo de ferro maciço do tamanho de um lápis, que se encaixa em um furo redondo no moirão lateral. Escora a porteira para trás, com uma pedra, para facilitar a passagem. Era exatamente ali que ele e a avó esperavam os pais no início da noite. Ela tinha sempre um pedaço de cuca de uva enrolada num guardanapo, para que o neto comesse mais tarde. Sorria com todos os vincos da face. Os peixinhos na pele da mão destacados; palmas grossas de sovar pão. Acenavam-se até o carro desaparecer na curva próxima.

O pai joga o cigarro ao chão, pisoteia a bagana. Respira fundo, olha para o alto. Suspira. Faz sinal para que o filho entre. Daniel diz que não com a cabeça. Permanece imóvel. Aperta os lábios. Fará a despedida no lugar de sempre.

Andréa Farias
Enviado por Andréa Farias em 13/07/2007
Reeditado em 11/11/2007
Código do texto: T563804