O presente

Uma simples volta para o interior. O trem lotado, o barulho de vozes e aquela ansiedade que precede todas as viagens. Lá fora, uma paz imensa parecia ter engolido o tempo. Aqui dentro, um nervosismo crescente e incompreensível eternizava cada segundo. De repente, o apito expulsa o silêncio da atmosfera e introduz o sonho, breve, logo desfeito pelo chacoalhar rítmico do trem sobre os trilhos.

Tudo agora passa voando. As árvores, os postes, as vacas. Passam tão rápido como se fossem inéditos, levando consigo pensamentos que na verdade são recorrentes para mim. Isso mesmo; pensava na fugacidade das coisas, aquelas com as quais nos preocupamos que são o contrário de outras as quais não damos à mínima e, no entanto, eis que se nos assemelham à eternidade. Parece-me ter visto isso, outro dia, nos olhos de um vira-lata bonito e bem cuidado, lá na estação de trem. Parece-me estar vendo isso agora nos olhos dessa senhora que está sentada à minha frente, sorrindo pra ninguém.

Interessante essa senhorinha. Sorri e balança a cabeça num gesto de concordância. Ergue a mãozinha pálida, cheia de veiazinhas azuis e, com o indicador e o médio faz um sinal. Um sinal. O sinal dos deuses! O coração dispara, a saliva aumenta. Os frágeis bracinhos se abrem para receber uma forma suave e forte, que se continha dentro de um displicente vestido. A velhinha se achega bem mais para o canto e convida a moça a sentar-se. Agora ela está bem de frente. Bonitos olhos castanhos, fluidos. O cabelo luta contra o sopro da janela, e os caracóis resistem. Mãos delicadas e macias vêm apaziguar uns e outros.

Diante disso, eu poderia parar aqui e ficar sem pensar nada. Apenas contemplando esse momento de beleza. Talvez a eternidade seja apenas o momento da beleza dos olhos de quem vê nos olhos de quem é visto. Então, abro minha bolsa, minha grande bolsa, procuro alguma coisa, uma lembrança qualquer. Eu preciso presenteá-las; avó e neta, mãe ou filha.

__ Com licença, senhoritas. Desculpe-me a intromissão. É que sou um seminarista, como já viram, e estou voltando para casa.

__ Bem vindo ao lar, meu jovem! Que, Deus possa fazer de ti um intercessor de todos nós, disse a senhora.

__ Gostaria de dar-lhes um presente. Prometo não incomodar mais. Só preciso que aceitem, pois vem da minha alma.

__ E essas bondades todas, significam o quê, perguntou a moça.

__ Apenas gratidão, por esta terra e por estas pessoas. Vocês duas foram as contempladas. Deixa-me ver se encontro, aqui. Sim, encontrei algo. Algo que eu considero muito importante.

Na palma da mão, um crucifixo de madeira incrustado de alumínio prateado, com uma fita benta de Trindade. Eu ofereço-lhes com muito cuidado e é recebido com maior carinho ainda. Lindos olhos castanhos que agradecem brilhando, sorrisos inteiros e recíprocos que transmitem tanto o ato quanto a intenção, bocas que em uníssono vão se abrindo para agradecer, ao mesmo tempo em que hábeis mãozinhas e suaves mãos procuram alguma coisa em suas bolsas de palha. Procuram com calma, suavemente. De repente, com pressa e ansiedade olham para mim, como se desculpassem, mas voltam a procurar, procurar e... tudo escuro.

O túnel, havia me esquecido do túnel. Ele sempre esteve aí, um pouco antes da estação da minha cidade. Droga! É preciso ter calma. Localizo minha bolsa, ajeito a camisa, e ainda no escuro procuro levantar-me, mas mãos tranquilas pousam-me no ombro, seguram minha nuca enquanto lábios quentes tocam-me a testa. Um beijo. Um presente que eu levarei sempre comigo.

Terminou o túnel, findou a escuridão. Levanto-me e antes de sair aceno com as duas mãos, presto uma reverência e me vou, carregando comigo, cravado na pele, o presente mais valioso. O presente que é dado e recebido por seres humanos que se gostam e que eternizam esse sentimento. Foi a primeira vez que recebi um presente desses. Um beijo. E não me importa quem beijou.

make
Enviado por make em 25/05/2016
Reeditado em 15/12/2016
Código do texto: T5646442
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