Aquela que Traz Alegria

Em todos os dias do ano, as pessoas definem o que querem por aquilo que veem na TV, ouvem nas rádios, analisam nas filas de banco, nos manequins das lojas. Se aquele era o carro do ano, então só ele valia a pena até um novo modelo ser lançado. Celular?! Só o de última geração com câmera que já produz a sua maquiagem e remove as espinhas automaticamente. Não dava tempo para prestar atenção no que acontecia ao redor. Nos pedintes largados sobre as calçadas podres de concreto, nas mães que apressavam seus filhos birrentos ao colégio, no grupo de executivos conversando sem desviar o olhar da tela do smartphone, no passeador de cães que brigava sempre com as dez coleiras que carregava enquanto embolavam umas às outras... Ninguém sabia dizer a cor dos olhos do pipoqueiro da esquina ou como soava engraçada a risada da moça alta parada na entrada do cinema, o quão doce parecia a senhorinha sentada na venda de tapiocas. Ninguém se importava, ninguém queria saber.

Ela era diferente. Aos vinte e poucos anos, caminhava pelas ruas movimentadas daquela cidade grande, não olhando pra baixo como o restante, mas com o nariz apontando em todas as direções. Gostava de ver as pichações nos prédios antigos e imaginar como conseguiram chegar lá e fazer aquelas marcas. Também se questionava com torturante frequência qual seriam os nomes das belas atendentes da loja de sapatos, da moça cansada da cabine de sorvetes do Mc Donald’s, dos vendedores idosos, mas de olhar astuto, da loja de ternos. Sempre por quês e mais por quês! Não se conformava com a incerteza, e como poderia?

Queria respostas completas, sem palavras miúdas enfiadas entrelinhas. Queria amores reais, sem enganação, sem meias palavras, sem inverdades. Amizades que não carregassem segundas intenções seriam ótimas, para variar. Gostava de sim e não, porém, não se queixava dos “talvez” de vez em quando. Só fugia dos “E se” da vida. Ah, esses ela não suportava! Não ser capaz de saber o que poderia ter acontecido e deixar a imaginação vagar por caminhos ainda mais tortuosos do que a própria realidade era demais para a garota. Então, ela varria a selva de pedra com olhos ávidos, grandes orbes castanhos capazes de engolir edifícios inteiros em seus enormes abismos.

Não se enganem. Apesar da expressão apática, morta e sem vida, havia mais segredos naquele olhar vazio do que se pode dissertar a nossa vã filosofia. Todos os dias, ela se equilibrava em cima de um salto quase alto e desbravava o mundo. Passava horas de pé no trabalho, sentindo as veias das pernas dilatarem de dor pelo esforço de tantas subidas e descidas na maldita escadaria apertada que tanto odiava. Se reclamava? Não em voz alta, pelo menos. Deixava os pensamentos ruins para si e sorria, apenas. Exibia um conjunto de perolas alvas, que, por um defeito ou dois, não eram perfeitamente alinhadas umas as outras, mas encantava ainda assim. E cativava, como o fazia! Não existia sequer uma pessoa que não saísse renovado ao ouvir seu bom dia, boa tarde, boa noite, como vai? Passou bem de viagem?

Então voltava para casa quando a escuridão já cobrira toda a rua. A lateral da cama servia para o mesmo propósito idiota: Pendurar o uniforme para o dia seguinte. Então, se banhava e esperava, todavia, nada acontecia. Era sempre assim, noite após noite. O que esperava? É uma boa pergunta que, muito embora fosse fácil para ela, nem a própria saberia responder com exatidão. Talvez fosse a ligação de uma amiga que nunca mandava notícias, a revelação de um amor que há muito esperava, a boa notícia sobre a melhora de um familiar enfermo, uma entrevista de emprego...

Como em todas as noites, ela esperou ao lado do celular, com o notebook sobre as pernas, já vestindo um pijama velho de flanela... E, como em todas as noites, a amiga não ligou, o amor não se declarou, o familiar não melhorou, o empregador não a convocou. Você acha que ela desistiu? Não, não. Assim como de costume, pegou suas coisas, forrou a cama, trancou o quarto, apagou a luz e se enfiou nas cobertas. Amanhã seria um novo dia com outras oportunidades para levar sorrisos às pessoas, para fazer o dia de alguém melhor, para batalhar o pão de cada dia, para fazer um certo rapaz se sentir amado. E, mesmo que de nada adiantasse no anoitecer novamente, ela sempre teria a certeza de um próximo dia. Só não valia se deprimir, nem parar de respirar ou jogar a toalha.

Um dia, ela sabia, não seria mais a garota de sorriso partido.

Ladra de Tinta Seca
Enviado por Ladra de Tinta Seca em 02/06/2016
Código do texto: T5654427
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