O Beco

Vinte e duas horas e quatorze minutos. Véspera de Ano Novo. Os sacos de lixo eram carregados por três homens vestidos com macacões brancos, curiosamente limpos. Pelo contorno negro do plástico notava-se o suco encardido forçar uma das pontas. Um deles, que aparentava mais idade pela longa barba ruiva, drenou parte do líquido para uma garrafa de vidro. Aparentemente, nenhuma gota deveria ser desperdiçada. Seguiram por dentro do beco com a certeza de que não seriam seguidos. Não que o brilho suado da cabeça raspada do maior deles não assustasse, mas a simples imagem do corredor ao ar livre tremia os ossos. Pichações com frases poliglotas decoravam as paredes com um vermelho incômodo, ruídos mecânicos marcavam o ritmo, restos de uma fogueira feita com ossos de galinha estalavam. O temor não estaria completo sem as mariposas que revezavam as asas no poste de luz, insistente ao falhar.

Sem pronunciarem palavra alguma dois dos “encarregados” dobraram à direita no corredor, onde um bolsão, de arquitetura similar à base de uma masmorra, reservava um cenário não menos curioso. Em funcionamento acelerado uma máquina esmagava os sacos de lixo, liberando em um tubo parcialmente entupido, o resultado líquido daquelas sobras. O terceiro homem, o barbudo que momentos antes enchera uma garrafa com o mesmo fluido, virou-se para a entrada do beco. Após confirmar o horário no relógio sorriu quando um vulto atravessou lentamente, rodeado por alguns cachorros libertos das coleiras. Sempre pontuais. Um deles abanou o rabo ao farejar o rastro que se condensava e foi repreendido pelo semblante sombrio. “Ainda não, Boris”.

Vinte e duas horas e quarenta e sete minutos. A máquina trepidava em resposta ao ritmo frenético com que os sacos de lixo eram jogados em sua boca metálica. O mecanismo, parecido com um tradicional moedor de cana, fora adaptado para que recebesse restos com maior consistência. Com aproximadamente um metro e sessenta, o gordinho que se apertava no macacão de número errado ajeitava os óculos e abria uma caixa de ferramentas. Resmungando através do nariz entupido, começou a ajustar alguns parafusos da máquina, ainda em movimento, enquanto fechava a cara para o companheiro ruivo. “Já avisei que vidro é perigoso!”, gritava o mecânico em súbitos estouros. “Você sabe como é o procedimento. Nenhum lixo pode ser deixado de fora.”, respondia calmamente o colega enquanto alisava, entre os dedos indicador e polegar, o líquido que jorrava do tubo. “Fique tranqüilo, já está perdendo parte da viscosidade. Mais alguns litros de álcool e meio galão de vinagre e vai ficar perfeito”, completou o barbudo sardento.

Distorcido do ambiente, Pierre, o gigante de cabeça raspada, conectava alguns fios a uma impressora que parecia ter sido sucateada por alguma gráfica falida. O brilho da tela do notebook confirmava seu funcionamento, gerando gargalhadas que dobravam de volume na acústica privilegiada do lugar. “Pode começar a imprimir os adesivos porque o galão tá quase cheio”, vibrou o ruivo, deixando claro quem liderava o trio. Após pressionar dois ou três botões, Pierre acenou a cabeça para seus companheiros em despedida. “Au revoir”, disse sério rumo à saída do beco. Precisava se preparar.

Vinte e três horas e cinco minutos. Todo o lixo havia sido triturado. O último teste de viscosidade aprovara o resultado. Um funil verde-limão fora providenciado para finalizar o processo. “Rápido! Agiliza aí e eu vou colocando na caixa”. Novamente, o gordinho ajeitou os óculos e despejou o líquido nos recipientes, fechando os olhos com prazer cada vez que o aroma encontrava suas narinas. “Estamos cada vez melhores... cada vez melhores”, declarou baixinho.

Vinte e três horas e cinqüenta e nove minutos. Empresários, modelos e artistas apertavam-se no famoso restaurante, ansiosos pela contagem final. Os músicos tocavam frenéticos a última música daquele ano. O mâitre ordenava a sua equipe que preenchesse as taças com o champagne que havia comprado especialmente para a data. “São aquelas garrafas da caixa que acabou de chegar, senhor?”, certificou-se um garçom novo. “Oui, mon ami.”, confirmou Pierre, enquanto seguia com os olhos a matilha de cachorros que se organizava do lado de fora do restaurante.

Cada um escolhendo a próxima boca que lamberia.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 16/07/2007
Reeditado em 16/07/2007
Código do texto: T567627
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