A BATALHA DA SOLIDARIEDADE

- Meu filho, a campainha tá batendo. Faz o favor de ver pra vó quem é.

- Vó, é o Zito. Posso deixar entrar ?

- Pode. Só avisa o vô que você tá indo lá abrir o portão.

Esta cena se repetia toda semana na casa da minha avó. Se não era o Zito, era um expedicionário de olhar assustador que gritava no portão palavras de guerra e levava embora pilhas de jornal velho que meu avô guardava embaixo da escada. Também havia muitos outros, que vinham frequentemente buscar alguma sobra de comida.

Mas com o velho Zito era diferente. Era o único que tinha o privilégio de entrar, sentar-se à mesa e tomar café.

Sempre trajando terno, chapéu e segurando um guarda-chuva surrado, todos intencionalmente pretos, ele pedia licença, entrava, pendurava os pertences no corrimão da escada e sentava-se à mesa já murmurando o que parecia ser uma oração de agradecimento.

Homem de poucas palavras, só falava mais que meu avô, que na outra ponta, sentado de lado na mesa e de frente à TV, parecia estar em outro mundo. Podia acontecer o que fosse que ele permanecia imóvel. Um “boa noite” e um “até logo” para quem chegasse ou saísse poderia ser considerado um discurso.

Quanto ao Zito, um detalhe que me incomodava era o forte mau cheiro que exalava. A falta de asseio, misturada ao cheiro de tabaco barato enrolado em palha, eram de virar o estômago de qualquer um.

A única que parecia inabalável em seu propósito era minha avó. Não tinha mau cheiro que a impedisse de servir uma xícara de café e um pão com queijo e manteiga àquele pobre homem.

Era o momento dele então ajeitar o guardanapo de pano por entre o colarinho encardido e aguardar pela generosidade daquela senhora.

Com minha avó na cozinha preparando o café e o meu avô entretido em seu mundo particular, tinha chegado a minha hora. Estava aberta a “temporada de caça”.

No primeiro patamar da escada que dava acesso ao andar de cima da casa, havia um vão no corrimão em que se avistava toda sala de jantar.

A arma a ser utilizada era um tubo de caneta e a munição, bolinhas de papel molhado. A mira como não podia deixar de ser, o Zito.

Imaginava aquele expedicionário dando a ordem de tiro ou gritando:

- Foooooooogo !

- Booooooomba !

O tiro na mosca era quando a bolinha vencia o denso bigode do “inimigo” e alojava-se na sua boca. Neste momento ele, com cara de poucos amigos, procurava o franco atirador olhando na direção da escada. A escuridão vinda do andar de cima me protegia. Parecia estar entrincheirado.

Obviamente ele sabia de onde vinham e quem era o responsável pela artilharia pesada. Hoje, acho que ele interagia e que conscientemente fazia o papel da vítima. Talvez um modo de preencher o vazio daquela vida sofrida e solitária que levava.

O olhar sério da minha avó, que vinha da cozinha carregando o café, reprovava minha ação e pedia respeito nesta hora sagrada.

Era mais que o suficiente para a trégua necessária, que mais tarde se tornaria rendição e me levaria a um pedido de desculpas formal à “vítima”.

Aceitas as desculpas com um sorriso sarcástico e, aplacada a fome, Zito acendia seu cigarro de palha como um sinal de satisfação. Sem demora apressava-se em recuperar o chapéu e o guarda-chuva pendurados e ia saindo, grato pelo café e pela “companhia” discreta do meu avô.

Depois de tantos anos me pego pensando como foram importantes aqueles anos vividos naquela casa. Meus avós, o Zito e muitas outras pessoas que fizeram parte da minha vida, já não estão mais por aqui.

Ficaram entre outros ensinamentos, as lições de solidariedade. É bem certo que os tempos são outros e hoje talvez não agíssemos da mesma forma. Mas vejo que muitas atitudes que permeiam minha vida são baseadas na preocupação com o próximo, suas diferenças, suas necessidades e seus costumes.

Os “Zitos”, das mais diferentes formas, estão por aí e cabe a cada um de nós servi-los de alguma maneira. Quem sabe como fazia minha avó. Quem sabe com um consentimento velado como de meu avô. Ou ainda da maneira que cada um achar conveniente.

Os “inimigos” agora saíram da trincheira. A individualidade e a indiferença tomaram de assalto o mundo em que vivemos.

Interagir com o “seu” Zito, talvez seja um primeiro passo para reaver posições perdidas.

Rodrigo Munhoz Pereira

Rodrigo Munhoz
Enviado por Rodrigo Munhoz em 23/06/2016
Código do texto: T5676399
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