Vão-se os dedos, mas ficam os anéis

Esta história pertence à infância. Não que hoje, como se fosse ontem, eu não lembre de tudo que agora relato.

Costumávamos brincar o dia todo, todo dia. Naquele tempo não existia computador, televisão colorida ou videogame. Nós mesmos fabricávamos nossos brinquedos.

Só dava tempo para fazer tanta coisa porque tínhamos todo tempo do mundo. Dominávamos o tempo.

Nosso forte mesmo era a produção. Do balão ao arco e flecha, da seta, do campinho de futebol, da pista de bicicleta, da casa do terror e de filmes baratos.

Para o balão, folhas de jornal e cola de goma de fogão.

Para o arco e flecha, galho e paina reta.

Para a seta, forquilha de árvore e a bolinha de mamona certa.

Para o resto, muita mão de obra e dedicação.

Este trabalho sim, um trabalhão que dava uma fome danada.

Era nesta hora que aguardávamos com ansiedade aquele chamado:

- Crianças venham comer!

E, num passe de mágica, estávamos todos sentados esperando a surpresa do dia. O cheiro já anunciava a delícia que estava saindo do fogão.

Finalmente apontava ela segurando com firmeza aquele prato quentinho.

Chamava a atenção de todos o anel de brilhantes que ostentava em um dos dedos da mão.

A vontade de avançar naquele prato era contida pelo respeito que ela exigia com seriedade e ao mesmo tempo com tanto carinho.

Podíamos repetir à vontade, mas nunca era nos permitido desperdiçar.

Passaram-se assim anos e mais anos de brincadeiras e comilanças.

Até que um dia, tudo acabou.

Ninguém nos chamou e não sentimos aquele cheiro inconfundível. Então, não sentamos mais àquela mesa farta.

Soubemos à noite que ela tinha passado mal e subitamente tinha nos deixado para sempre.

Anos mais tarde, encontrei um daqueles amigos. Era por coincidência, o filho daquela amável senhora. Carregava consigo o anel que por anos havia adornado aquela singela mão. Estava indo levá-lo a um comprador de joias.

Perguntei se ele não tinha apego por aquela peça que nos trazia tantas boas lembranças.

Ele um tanto comovido, assertivamente me disse:

- As mãos que tanto fizeram por todos nós não estavam mais aqui. Este anel tinha valor quando vestia o dedo daquela mão abençoada.

Enfim entendi o que ele quis dizer.

E pensei comigo...

-Então, que se vá também o anel.

Rodrigo Munhoz
Enviado por Rodrigo Munhoz em 24/06/2016
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