O Vulto

Chegava a noite quando, finalmente, apareceu o padre Carlos, alguns minutos depois de Roberto já ter tomado a sopa horrível que lhe serviram como principal refeição do dia, feito às cunhas. Sobre o leito jazia somente seu corpo, com os ferimentos da recente ofensiva devidamente cuidados.

Amparado pelo lampião pendurado acima de sua cabeça, ele olhava para o vulto de uma árvore próxima à janela, a qual lhe indicava, levemente, um pensamento sutil que amiúde fazia os pêlos do corpo arrepiarem-se, devido ao contraste que havia entre o vulto e o céu escuro, ainda carregado com o cheiro de pólvora e com a nuvem maciça de poeira que a última bomba deixara como recordação quando fez estremecer o chão do acampamento. Os mosquitos lhe faziam companhia desagradável, e o ar infeto pelo odor da morte irritava suas narinas. O rumor fora da barraca suscitava uma miríade de vozes atropelando-se como se fossem locomotivas sem direção, acionadas por algum impulso procedente de uma insensata e desesperada devoção pela vida.

Padre Carlos postou-se ao pé da cama, com seus 1,95 cm de altura e majestoso semblante, de olhos condoídos e fitos no rosto angustiado do Roberto.

_ Ainda sente muita dor? – perguntou ele, anunciando uma garrafa de vinho que trazia escondida sob suas vestes.

_ Se as coisas não vão bem, ao menos temos de considerá-las toleráveis. Não é assim? – indagou Roberto, enrugando o rosto devido à dor.

Carlos sacou a rolha da garrafa e tomou um longo gole no bico, sentando, em seguida, mais perto do enfermo, a fim de escutá-lo melhor. Encostou a garrafa entre os lábios do moribundo com destreza, e esperou Roberto sorver um gole, até que disse, suspirando:

_ Não tenho muito tempo. Preciso ir visitar os outros enfermos. Por que me chamou?

Roberto sorriu.

_ Só quero que me responda uma coisa.

_ Diga.

_ Isso aqui é uma piada, não é mesmo? – deu uma pausa, para tomar fôlego. - O que devo dizer a Deus quando encontrá-lo?

No semblante do padre, um aparente cansaço tomou forma, parecendo contrafeito com a pergunta.

_ Nossas vidas são apenas o pequeno ponto final que costumamos colocar numa frase quando não conseguimos completá-la – disse Carlos. Acrescentou, como que devaneando consigo: – Nem os anos mais vindouros são capazes de abastecer o coração desmantelado daquele que já se julga entregue.

_ Eu não devia estar lá, padre! - exclamou Roberto, referindo-se ao bombardeio ocorrido no campo de batalha em que ele exercia sua patente de sargento.

_ Aquilo que nos acontece, meu bom amigo, é a mescla perfeita de nossas devidas punições, recompensas e provas, plenamente conjugadas da melhor forma possível, conforme a Providência designa ser sensato e salubre.

_ E quê direito eu tenho? Não tenho escolha? Não seria mais honroso eu escolher a punição, ou a recompensa ou a prova? Ora, me dê mais um gole desse vinho, por favor – pediu Roberto.

Carlos assentiu, mobilizado e prestativo. Roberto continuou:

_ Você realmente acredita nisso?

Ficaram a se olhar por algum tempo, e embora fossem bons amigos, manter um diálogo naquele momento estava mais difícil do que poderiam conceber em qualquer outra ocasião.

_ Você está parecendo um pouco abatido – comentou Roberto. – Mas apesar de você se esforçar para não demonstrar isso, eu entendo, compreendo o que deve estar sentindo, porque também o sinto. É a droga dessa guerra, a sujeira que ela lança ao ar, não é?

_ É. Fico enojado, tonto, ansiado cada vez que ouço essa palavra. Sinto-me deprimido quando vejo esses homens se matando, só porque simplesmente alguém com um ego inchado achou uma boa idéia impor aos outros aquilo que acredita ser bom para todos – Carlos fitou o vulto da árvore, e permaneceu observando-a, até que se voltou a Roberto e continuou. – Isso parece não ter explicação alguma! Estes atos desesperados procurando encontrar o que desejam e que no fim acabam se rendendo e aceitando as coisas por muito menos são o fim da picada, a legítima depreciação da alma.

_ Tenho medo, padre – comentou Roberto, com um brilho úmido nos olhos.

_ Do quê?

_ Sabe, mesmo ferido, não é essa a dor que estremece meu corpo, é algo além, que não está em mim de todo. Não sei, mas é uma dor muda e aguda que parece diferenciar tudo aquilo que fiz até hoje do que realmente possa significar minha vida agora, me fazendo mais sensível às pequenas coisas que rodeiam esse acampamento. Pouco antes do ataque, visitei os alojamentos para ver como se sentiam os soldados, e quando regressei para minha barraca, completamente desnorteado pelo que vi, senti uma vontade de chorar como nunca tive antes, e aí, quando já não suportava mais ver aquilo, quando as lágrimas começavam a rolar, fui surpreendido por um clarão seguido de um enorme estrondo. Fui jogado longe, como se eu fosse uma pluma ínfima. Então, antes de poder chorar e sentir o alívio esvanecendo-se com as lágrimas, acordei aqui, sem uma perna e com o olho esquerdo vazado. Que desgraça, padre! Ah, eu nem queria estar aqui!

Carlos voltou a olhar para o vulto.

Expressando cansaço, uniu as palmas da mão junto ao peito e, numa genuflexão, passou a comungar consigo mesmo, tão baixo, que Roberto não conseguia escutar o que dizia. No máximo, podia supor.

_ Não teria sido possível impedir essa guerra? – balbuciou Roberto, interrompendo a reza do padre.

Carlos calmamente abriu os olhos e lançou um sorriso afetuoso para Roberto, respondendo, após um suspiro:

_ Não sei. Realmente não sei, meu amigo. Mas por certo essa guerra não irá salvar ninguém.

_ Também está perdendo a esperança, padre?

_ Sempre há esperança – respondeu ele, com um brilho sutil e constrangido nos olhos.

Roberto atentou a expressão melancólica dele, e num átimo de reflexão, imaginou o que deveria estar sentindo o pobre e bom homem ao seu lado, metido naquele lugar prenhe da morte infalível por todos os lados, e sem endereço certo para as famílias que ficaram para trás rogando misericórdia a Deus, para proteger aqueles desesperados a correrem do próprio medo.

_ Por que ainda não foi embora? Sabe que não está obrigado a continuar aqui – indagou Roberto, condoído após a reflexão.

_ Sirvo a Deus – respondeu Carlos.

_ Deus não é respeitado por aqui. Sabe disso.

_ Há de ser respeitado! – exclamou Carlos, nervoso. – Deus insiste e tem paciência com seus filhos. Ele nunca os abandona. Jamais!

_ Acho que isso passa desapercebido por aqui. Quem faz guerra ri da cara Dele, e as pessoas só lembram Dele quando estão em perigo. Somos todos uns bastardos! Santo Deus! Ah, eu não queria estar aqui!

_ É compreensível. E a maioria dos que estão nessa guerra deve pensar a mesma coisa.

_ Então por que não fazem nada para acabar de uma vez por todas com ela? O que estão esperando?

_ Nem sempre o homem consegue perceber a extensão da vida, e quando começam a achar que sim, ficam loucos – respondeu padre Carlos.

Carlos se aproximou da cama e levou a garrafa de vinho aos lábios, depois saciou a sede do enfermo, sem que nenhum dos dois pronunciasse qualquer palavra.

_ Todos temem a Deus, de uma forma ou de outra – continuou o padre, após degustar demoradamente o gole de vinho.

_ Por isso fazem guerra?

_ Quem ama faz coisas, e quer ter motivos para se sacrificar em prol de algo que lhes dê significado. O problema é que excedem no temperamento de suas conclusões a respeito das coisas. Numa guerra, sempre chega a hora em que todos começam a amar Deus, dos dois lados da linha.

_ Nisso tem razão... Mas se isso realmente acontece, não é motivo a mais para desrespeitar a Deus? Afinal, se os dois lados passam a amá-Lo, não é dele a culpa? Mesmo assim, não é isso o que faz terminar uma guerra – disse Roberto.

_ O que o faz então?

_ Ora, a simples derrota.

Escurecia ainda mais, e o medo de um novo bombardeio sobreveio com rumores vindo do lado de fora.

_ Sinto muito pelo o que lhe aconteceu, meu amigo, mas preciso ir agora. Outros também me esperam – despediu-se o padre, sentindo seu peito apertando.

Roberto assentiu silenciosamente, mas enquanto via o padre Carlos encaminhando-se para a porta, num rápido segundo, olhou para o vulto da árvore e sentiu algo profundo que não conseguiu segurar, ao que então lhe pediu para que esperasse só mais um pouco, pois que ainda tinha uma pergunta para fazer, antes de se despedirem, e que ficaria muito feliz se a pergunta fosse respondida, de modo que somente assim poderia suportar a dor e a solidão iminentes daquela noite fria, vazia e sombria que errava por todos os cantos de sua alma.

_ Claro. O que é? – assentiu padre Carlos.

_ Percebeu aquele vulto da árvore, ali, através da janela?

_ Sim.

_ Sabe de uma coisa, aquele vulto sou eu, padre – disse Roberto, suspirando melancolicamente. - Tenho vergonha, mas não posso denegar, porque se eu negasse isso, seria apenas mais um número quantitativo nessa guerra maldita.

Carlos encarou-o e sorriu afetuoso, segurando-lhe a mão esquerda, fraquejante. Nisso, rompendo o silêncio meditativo que uniu seus olhos após a pronúncia de Roberto, escutaram passos em torno da barraca, e estranharam, pois o ruído que fazia, embora perceptível, demonstrava cuidado, e se não fosse pelos galhos secos espalhados eventualmente ao redor da barraca, não teriam notado qualquer som. Ambos se entreolharam e depois se viraram para a janela. O vulto da árvore desapareceu. Assustaram-se ao mesmo tempo. E no momento em que ainda tentavam adivinha o que acontecia, uma rajada de metralhadora rasgou a lona da barraca atingindo-os sumariamente, matando-os sem hesitar, sem qualquer vacilo.

O ataque foi altamente consumado pelo inimigo invisível, que se aproveitara do descuido deles e dos rumores infernais em derredor para impiedosamente eliminar seus alvos sem chamar a atenção dos outros que se encontravam por todo acampamento.

Somente duas horas depois do ocorrido, quando o inimigo já havia se tornado invisível outra vez, fugindo pela mesma porta que entrou, é que os dois foram encontrados, banhados pelo sangue pegajoso que esvaía de seus corpos imóveis feito pedras, jazidos ao lado da garrafa de vinho, que se manteve intacta.

Escrito em 15/07/03

DonnieDarko
Enviado por DonnieDarko em 17/07/2007
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