ENSINO SUPERIOR: Serve para que mesmo?

Ao final de uma das exposições teóricas sobre a disciplina que lecionava, a professora Glória se sentou e fez a chamada oral dos alunos que constavam da lista de presença que tinha em suas mãos. Ela estava se sentindo bastante incomodada com a postura dos mesmos diante do seu esforço em ensinar-lhes algo.

Pensou um pouco e resolveu dizer para sua turma de quinze alunos da Administração que os imaginava mais interessados nas aulas e no curso de um modo geral, já que o desempenho de todos tinha sido muito ruim após a realização das duas primeiras avaliações.

Estava um pouco confusa, pois havia disponibilizado os slides usados no sistema eletrônico de Gestão Acadêmica para que todos pudessem ter acesso prévio ao seu material de trabalho. Junto com eles havia ainda uma apostila, o cronograma detalhado do semestre e a bibliografia na qual se baseara.

Também tinha fornecido inúmeros exemplos práticos vinculados à realidade empresarial, aplicado e corrigido cinco trabalhos realizados em dupla dentro da sala de aula e passado um filme para ilustrar boa parte da matéria lecionada. Aparentemente não obtendo muito sucesso.

Sem conseguir se conter, Maria tirou um dos coloridos fones do ouvido, deixou de lado seu dispositivo eletrônico e disse para Glória que não via muita utilidade nesse tal de Ensino Superior. Afinal, tinha um irmão formado em Direito (José) que não conseguia emprego na área e não estava certa de que ela mesma estivesse aprendendo algo que pudesse alterar essa dura realidade. “No fundo, eu acho que isso não serve para nada mesmo”.

Glória sorriu e não demonstrou nenhum abalo com aquele tipo de afirmação à queima-roupa. Respirou fundo, esticou o pescoço e se preparou para fornecer uma resposta contundente. De preferência, uma que pudesse ser sutil e educada. E que ao mesmo tempo servisse como lição, sem correr o risco de se transformar em outra discussão inócua.

Em seguida, ela se dirigiu a todos dizendo que o ensino de nível superior devia ser encarado como sendo de fato Superior. Não apenas no sentido de ser algo melhor ou de maior valor. Mas superior no sentido da qualidade, comprometido com a formação de pessoas críticas e conscientes do seu importante papel social.

Um tipo de educação que tem o poder de levá-las a melhorar e ampliar o seu círculo de relacionamentos, a conhecer mais a história do país e das civilizações e também a raciocinar por conta própria. Estimulando a audição, a visão, o debate e o acesso a informações relevantes. Proporcionando assim, o domínio de certas habilidades e instrumentos úteis para empreender ou trabalhar em empresas já estabelecidas.

Tudo isso para que se possa ter cidadãos atualizados, saudáveis e bem formados. Capazes de pensar, criar e agir conscientemente na construção e manutenção de uma nação considerada realmente desenvolvida nos mais diferentes e relevantes aspectos, tais como o social, o político, o cultural, o científico, o tecnológico, o ambiental e o econômico.

Glória respirou fundo novamente, olhou em volta e resolveu emendar sua breve fala dizendo: “Claro que isso não depende somente do renome dos curso, da estrutura do currículo, da infraestrutura da universidade, do tamanho da biblioteca ou da qualificação e didática dos professores que se dispõem a pesquisar, orientar e lecionar.

Certamente depende muito mais do interesse e da concentração de cada aluno, bem como da disposição intrínseca de dar o seu melhor, independente de quaisquer circunstâncias internas e externas. O que também significa assistir filmes e palestras, ler com frequência e participar mais das aulas.

Além é claro, da disponibilidade para estudar em outros horários, fazer estágios e participar de projetos de iniciação científica e de extensão, sem jamais se contentar com a presença física e a obtenção do mínimo de pontos necessários para aprovação em cada disciplina. Algo que talvez possa ter faltado ao seu irmão, minha cara Maria”.

Para terminar, Glória disse ainda que estudar era a única forma de garantir algum patrimônio na vida, fazendo uso de um ditado antigo para ilustrar sua colocação. “Na verdade, nossos avós e pais sempre diziam: Minha filha, estude, pois a educação é o único e valioso bem que ninguém poderá tirar de você. Não se esqueça disso”.

E completou ponderando: “Contudo, sabemos que alguns indivíduos não precisam mesmo disso para, em tese, vencer na vida. Mas eles são poucos e considerados geniais. Além de terem muita sorte por nascerem no lugar certo, na família certa e na hora certa. No caso de Bill Gates e Steve Jobs, bilionários que abandonaram seu curso superior pela metade, com a doença certa também (especula-se que com uma variante da síndrome de Asperger)”.

Prontamente Maria cerrou os dentes e fechou a cara. Tossiu levemente e abaixou a cabeça sem esboçar argumentos válidos. Não sabia e nem praticava nada daquilo. E não se sentia nem um pouco preparada para discutir algo assim, de uma maneira mais demorada e franca.

Achou melhor e mais prudente continuar agindo como sempre fazia diante de situações tensas e incômodas, preferindo permanecer calada e deixar isso tudo para lá. Afinal, um conflito desse tipo com uma professora chata no final do semestre não mudaria em nada sua vida.

Em seguida ela fechou os olhos e recolocou o colorido fone no ouvido, voltando novamente toda atenção para seu moderno e luminoso dispositivo eletrônico (fabricado pela Apple e com um software da Microsoft). O mesmo que insistia em alertar sobre sete novas mensagens instantâneas que esperavam ansiosamente para serem lidas e respondidas.

Enquanto isso a professora Glória desligou o equipamento multimídia, juntou suas coisas, agradeceu a atenção dispensada, ligou seu ultrapassado telefone celular e murmurou um tímido boa noite. Não sem antes pensar em todo desperdício de tempo e dinheiro em que a Educação estava gradativamente se transformando.

Aproveitou o inusitado silêncio que reinava para sair rapidamente da sala de aula, deixando escrito no quadro apenas a sugestão de um filme (O Presente) e de um livro (Sapiens). Além de uma frase solta para reflexão (a preguiça anda tão devagar que a pobreza não tarda a alcançá-la). Hábito que mantinha vivo em todas as suas aula ao longo de vinte anos.

Sua sábia e oportuna saída foi intimamente comemorada por todos que estavam ali (inclusive ela mesma). Ainda que continuasse a pairar no ar frio da noite diversos motivos para decepção, medo, pessimismo e raiva. E porque não dizer, um grande e momentâneo alívio geral. Ufa!

Mello Cunha
Enviado por Mello Cunha em 04/08/2016
Reeditado em 20/08/2016
Código do texto: T5718793
Classificação de conteúdo: seguro