Em cantos

Em cantos

A cozinha. Aos poucos, pude ir adentrando nela. Aos poucos, me foi permitido entrar em sua intimidade, até o momento em que ficamos a sós. Olhamo-nos, então, naquela manhã de domingo de nobres silêncios. Silenciosamente, pude escutar sua voz.

- Não me abandone! Um tanto ofegante, disse o canto do armário da cozinha.

Demorei-me para saber de onde vinham aquelas palavras. Não era alucinação auditiva. Ela se pronunciava no silêncio do ambiente, através de palavras dentro de mim. Nem sempre é simples localizar a origem dos sons, tampouco das vozes que se humanizam nas coisas.

- Como faço para te preservar em vida? Proferi, ousadamente.

Difícil é a preservação. Talvez, uma das coisas mais difíceis da vida. Exige esforço contínuo. Movimentos de partículas de átomos e moléculas. A preservação contém regeneração, renovação, transformação. Transformar algo é também o esforço da própria transformação.

Aquela cozinha, um dia, foi planejada. Imaginada por alguém. Ela cabe perfeitamente no lugar que ocupa. Alguém pensou, alguém desenhou, alguém cortou o material, montou, pintou. Muitos alguéns existiram para ela acontecer para o mundo. Mas o tempo. Esse senhor de nossas vidas, veio. E vieram muitos outros alguéns nesse tempo. Era preciso que outros alguéns existissem para preservar a mão-de-obra inicial. O desejo inaugural. Muitos desistiram. E o canto do armário ficou então, um dia, assim: sem cor, sem brilho, em desuso.

- Talvez, caro canto do armário de cozinha, todos os abandonos contém esse movimento. É claro que existem planos distintos de abandonos - comentava com ele, enquanto esquentava a água para o chimarrão e lavava uma térmica que, também, há muito tempo, não cumpria sua real função. Assim, ali, proseávamos nas quietudes necessárias. Organizadoras. Uma intimidade acontecia. Um pouco de cada um formava nós. Sua voz era fala palavra dentro de mim.

Naquela cozinha, que poderia até ser considerada não mais cozinha, mas que um dia foi cozinha, o canto do armário ainda podia ter voz. Ainda poderia cumprir função.

- Abandono, também é isso: não estar cumprindo sua real função? Perguntou.

Silenciei. Eu, feita de silêncios. De palavras que se produzem nos silêncios. Têm palavras, tentei explicar para ele e para mim, que se formam pelos longos silêncios. Por isso podem ser espontâneas. Cantos.

O canto, quieto, acenou para sua direita, na entrada da lavanderia.

- A vassoura não varre mais como quando era nova...

- Sim. Talvez sua vagareza também tenha a ver com quem a conduz - supus através do meu sim. Poucos acreditam em vassouras que não são tão novas. Esquecem que todas, novas e usadas, precisam de mãos que as conduzem. O canto considerou:

- O movimento das pessoas que varrem com vassouras é esquisito. Você não acha? Nunca é retilíneo uniforme. Por vezes, preferem atalhos, mesmo com mais trabalhos.

- Seria a vassoura nova que varre melhor ou as pessoas que varrem com vassouras novas empreendem mais sua disposição do que as já gastas?

Desejo. Movimento. Coisas.

Naquele apartamento-acampamento com uma vista impressionante do nascimento e o pôr-do-sol, eu - após longos descansos, encontros - e o canto do armário, proseávamos. Aprendíamos como é possível não nos abandonar. Transformar os cantos em cantos. Encantos. A importância das coisas. Das partículas mínimas da vida. Do som dentro de cada canto que contém em cada um de nós.