A moça de branco

A moça de branco

Dezembro de 1941 numa pequena cidade litorânea Felícia e seu marido viviam um drama doméstico. A casa tornava-se pequena para abrigar os filhos, e os parentes agregados. Assim que Leopoldo seu marido anunciou aos quatro cantos da pequena cidade que estava milionário, pois acabara de ganhar o prêmio maior da loteria, a vida deles mudou. Sem nenhuma experiência comercial Leopoldo meteu-se a comprar dois armazéns e os abasteceu com tudo o que podia oferecer aos seus clientes.

A prosperidade entrara por uma porta, mas nem sempre a fartura é sinônima de sucesso. A mulher não o acompanhava nos vôos de imaginação. Sempre firme com os pés no chão, ela continuou dirigindo sua casa como se fosse um general no quartel, e tudo tinha que sair a tempo e a hora. Com a melhora das condições financeiras, Felícia, mulher inteligente e destemida resolveu não gastar mais do que necessitava. Para seu pequeno conforto contratou duas empregadas que a ajudariam a cuidar dos filhos ainda bem pequenos. Eram sete, além dos três primeiros que haviam falecido antes de completar um ano.

Não faltava trabalho para Felícia uma hora era nas lidas da casa, em que era ajudada por uma tia solteirona de nome Maria Angelina, outras ao pé do fogão de lenha preparando as refeições não só para a família, e também para os muitos clientes do balcão do armazém. Serviam almoço e jantar para alguns soldados que serviam no quartel ao lado de sua casa. Com a fortuna aumentaram a casa construindo alguns cômodos que alugavam para os soldados. Assim aumentavam a renda e prosperavam aos olhos invejosos dos parentes e de tantos outros conhecidos da cidadezinha.

O verão entrava forte anunciando mais uma temporada de praia. O Natal se aproximava. Felícia estava tão atarefada como sempre que não percebeu o que se passava com as crianças menores. Primeiro foi a Denise que arriou com uma febre alta, tosse forte e persistente. Felícia e a tia correram no farmacêutico pedindo algum remédio especial, pois a menina definhava. Não dava mais sinal de vida. Ela estava com quatro anos, como era muito sapeca e vivia fazendo traquinadas que as duas babás não podiam acompanhar o tempo todo, quando bateu na cama todos ficaram assustados.

A noite ela não conseguia dormir, Felícia cochilou alguns dias em sua cabeceira até que de repente a tosse foi espaçando, a febre foi cedendo e ela teve rápida melhora. Quando Felícia pensou que ia dormir tranqüila por uma noite, teve um lampejo do que se passava. Sua atenção para Denise que tinha bronquite e era muito magrinha, fez que ela desviasse o cuidado com os três menores, Angélica de cinco meses, Pedro Paulo de dois anos, e José Luis de três anos. Aquela noite foi muito terrível. Agora não era uma criança com febre, e tosse persistente, eram três. A doença atingiu os menores de uma só vez.

No dia 23 de dezembro a pequena Angélica faleceu em seus braços. Depois de tanto tossir e arregalar os olhos na ânsia desesperada para respirar. Felícia e Leopoldo ficaram desolados. Naquele ano não teve Natal naquela casa. Os vizinhos ficaram muito tristes com a partida da menina tão linda, rosada, gordinha, cheia de curvinhas. O enterro foi feito a moda daquele tempo. O corpo era velado em uma grande mesa na sala de jantar.

Um dia após o Natal, Pedro Paulo deixou também de respirar acompanhando sua irmãzinha para o céu. A tia Maria Angelina estava colocando as panelas grandes para ferver a água e tingir as roupas pretas do luto. Ao ver Pedro Paulo morto na cama, começou num choro miudinho que não conseguia evitar. A sobrinha Felícia, pela segunda vez, preparou o corpo do filhinho morto, vestiu e colocou uma flor entre as pequeninas mãozinhas. Não conseguia chorar, parecia que todas as suas lágrimas haviam desaparecido de seu ser. Novamente o mesmo ritual.

As outras crianças evitavam falar, sorrir, consolava-se de sua dor como podiam espiando pelos cantos tanta dor e tristeza.

Após o enterro do Pedro Paulo, a família estava devastada. Ninguém queria comer, só os dois meninos mais velhos e a menina Fernanda que entrava na adolescência conseguiram almoçar e tomar café.

Dois dias após o enterro do pequeno Pedro Paulo, José Luis amanheceu com uma febre altíssima, chamaram o farmacêutico em casa. Ele veio com sua malinha. As crianças ficaram espiando ao longe. O farmacêutico foi embora. Maria Angelina pegou seu rosário e começou a rezar. Felícia ficou ao lado do filho que estava deitado em sua cama. Ele no seu delírio conversava com alguém que a mãe não via. Ele vendo sua mãezinha a chorar falou-lhe numa voz quase desaparecendo: - Olha mamãe a moça de branco. Felícia perguntou-lhe: Qual é a moça de branco. Não tem ninguém aqui no quarto. Ele virou os olhos bem escuros e brilhantes e apontou para um quadro de Nossa Senhora dos Navegantes que estava pendurado na parede. Felícia olhou e as lágrimas teimavam em correr. O menino pediu com um gesto uma pequena gravura do Cristo Redentor lembrança trazida por uma comadre que morava no Rio de Janeiro. José Luis abraçou a gravura, depois com sua mãozinha delicada secou uma lágrima de sua mãezinha. E devolveu-lhe a gravura dizendo-lhe: - Guarda mamãe, um dia você vai nesse lugar. Agora eu vou embora a moça de branco está me chamando.

Felícia jamais esqueceu aquela cena, guardou a gravura do Cristo Redentor da cidade maravilhosa. Alguns anos depois ela aportava com o que restara da família justamente no porto do Rio de Janeiro, ao longe a imagem do Cristo Redentor lhe recebia com os braços abertos.

Aradia Rhianon
Enviado por Aradia Rhianon em 30/08/2016
Reeditado em 26/11/2018
Código do texto: T5744975
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