Abissofobia

Queria tocar alguém. Queria estender a mão e ignorar esse abismo que existe entre dois corpos, para finalmente chegar até outra pele, encontrar outro mundo. Entender qual é a textura de um outro calor. Mas toda vez que estendo os braços, sinto medo de cair nesse abismo imenso que se estende aos meus pés. O chão se abre, uma bocarra gigantesca que leva diretamente ao inferno, e tudo o que me resta é me jogar ao chão, balançando para frente e para trás, enquanto termino de roer as unhas. Então me levanto espantando o pó e desapareço novamente seguindo a multidão. Mas ninguém me toca. Acho que todos eles tem medo desse abismo que me segue, esses precipícios de dentes rochosos. Sou prisioneiro de uma ilha móvel, um pedaço de tempo que ninguém vê. Estou sempre um momento adiante, ou um segundo atrás do tempo em que as pessoas estão.

Queria tocar mais uma vez suas costas nuas. Pode aproximar meu corpo do seu e te sentir acomodar-se com a minha presença em suas cobertas. Mas não existe ponte que possa vencer os dezessete centímetros de abismo que existe entre nós dois. Deitado, em silêncio, invento constelações imaginarias no céu negativo pintado em suas costas e te ouço ressonar, desse jeito pouco feminino que me parecia tão exótico e que hoje é só um ronco.

Enquanto você dorme eu me sento na cama, as pernas cruzadas em posição de índio, o cigarro quase apagado entre os dedos e imagino que vou morrer em breve, sem tocar realmente mais ninguém. Já faz tanto tempo, tantos mundos, quase me esqueci como foi. Me custou cinqüenta reais e toda a dignidade e não levou mais do que quarenta minutos em uma cama pulguenta de um motel barulhento. Não fizemos nada, ela apenas se deitou de costas enquanto eu ligava os pontos de suas costas, com a ponta dos dedos. Ela gargalhou de um jeito estridente, disse que finalmente havia dado sorte naquela noite e pego um cliente bonzinho. Eu pedi para ela ficar quietinha enquanto brincava em suas costas. Coisa boba essa... a pura verdade.

Quando me levantei para ir embora, ela agradeceu com um sorriso bonito. Tinha a pele cheia de mordidas de pulga, estrelas vermelhas que bagunçavam os meus desenhos.

Eu te ouço tossir. Espero um comentário ranzinza, sobre a fumaça do cigarro, mas você não diz nada. Engole os lamentos em segredo, já não sou digno de suas palavras. O abismo se alarga um pouco mais, os lençois se rearranjam como cadeias de montanhas maleáveis através das eras. Quem sabe a quanto tempo estamos aqui? Quem sabe onde foram parar meus cabelos, a rijeza da minha pele, meu vigor? Talvez esteja tudo lá embaixo, tenha tudo sido levado pelo rio no fundo do abismo. Tudo o que eu queria era te tocar, poder ouvir novamente o som da sua voz, brincar em suas costas. Mas você não entende. Não tem como entender.

Eu apago o cigarro no cinzeiro.

E sopro a fumaça azul para o ar.

Uma estrela carmesim pisca a realização de um pedido e eu me despeço de uma vez dos cobertores.

Olho para a borda da cama e vejo Styx, borbulhar o lamento das almas.

E então me jogo da beira do abismo.

Texto da série Fobos