A MENINA QUE NÃO CONSEGUIA SEGURAR O BALDE

Logo no início da manhã resolvi lavar minhas roupas.

Estava quente. Do jeitinho que gosto. E tinha um vento que zunia feito música de árvores tresloucadas. Tinha certeza que as roupas secariam logo.

Foi quando peguei o balde...

Fui conduzida pela minha memória para perto de um outro balde. Um balde antigo e pesadíssimo para meus miúdos braços. Aquele fatídico balde onde tudo aconteceu.

Eu estava com cinco anos de idade e diante da minha mãe. Na lavanderia do nosso apartamento. Lugar pequeno e pouco funcional. Ela estendia as roupas no varal de teto. Eu segurava um balde vazio e outro cheio de roupas molhadas.

Minha mãe recolhia as peças secas e as colocava no balde vazio. E pegava uma peça molhada do outro balde. Mas ele estava muito pesado. E minhas mãos tremiam. Porque meus braços não conseguiam suportar.

Estava muito quente ali.

Ela era bem alta e magra. Suas mãos eram fortes e ossudas. Seu semblante era de uma eterna dor enlutada. Na testa as rugas engolfavam qualquer alegria. Tinha uns olhos que a tudo perscrutavam. Uma boca seca de lábios recolhidos.

A forma de seu corpo era sólida e monolítica. As roupas dançavam sobre aquele bloco de carnes duras. Simples. Lembrando os afrescos de Giotto.

Ficava observando minha mãe. Mas não havia sinal algum de que ela percebesse que eu não estava aguentando tanto peso.

Queria gritar para que ela me ouvisse. Mas não podia.

Uma dor súbita me fez desistir desse intento. E eu disse: Mãe quero fazer xixi. Ela me lançou um olhar que atravessou-me completamente. Disse: Você não quer fazer xixi. Você é safada. Inventa isso para largar o serviço.

Minha bexiga estava quase estourando. E ela retrucou dizendo que eu fizesse ali mesmo. E eu fiz!

Ela ouviu o barulhinho dos pingos no chão. E logo depois um jorro de alívio.

Rápida como um relâmpago ela tirou os baldes das minhas mãos. Arrancou minha saia de algodão com preguinhas e bolinhas vermelhas. Desceu minhas calcinhas cor-de-rosa ensopadas de xixi. Limpou o chão com minha saia. Torceu o líquido amarelado no balde vazio e disse: Beba! Eu bebi.

Aquele gosto amargo e salgado foi apertando minha garganta. Uma reação química começou a se espalhar e ganhar cada vez mais espaço em mim. A náusea se alastrava por todo canto. Revirando meu estômago. Alfinetando minhas vísceras.

E feito um bebê lotado de comida. Vomitei...

Surpresa com o acontecido minha mãe, perplexa e inflamada pela raiva, começou a colocar aquela papa azeda em minha boca forçando-me a engolir.

Eu não sabia o que estava acontecendo. Achei melhor acabar logo com aquela iguaria. E ela ali. A praguejar e praguejar. Parecia que ela era uma naja viscosa dentro daquele vestido de gabardine cinza com listras amarelas. Daquele lábio retesado e descamado saía uma língua muito comprida que salivava palavras venenosas.

O que mais poderia acontecer? Tudo! Não queria irritar minha mãe. Não queria ser ruim. Precisava ser boa. Mas qualquer coisa que eu fizesse sempre era o suficiente para que ela destilasse seu ódio em mim. Meu medo era viver sem poder respirar. E ela nunca me deixava em paz.

Respirei. Coloquei água no balde. Comecei a mergulhar minhas roupas. Uma a uma. Calmamente. Gostava de ver as bolhas a cada roupa afogada na água. Um pensamento prazeroso e maldito me veio à mente. E se eu tivesse feito isso com ela na banheira de casa?

Mírian Cerqueira Leite

Mileite
Enviado por Mileite em 03/10/2016
Código do texto: T5779747
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