Mas que Beleza!

O cumprimento do segurança ao abrir a cristalina porta de vidro desconfortou Eulália. Mal a cabeça havia confrontado o ar que vazava do lugar, começou a perceber que seu mundo não rodava naqueles eixos. Se estivesse sozinha daria meia-volta e fugiria de lá. Não estava. Sua irmã caçula, prematuramente infiltrada nas rodas sociais, construía argumentos sobre o poder da imagem pessoal enquanto a arrastava pelas mãos. “Existe até livro sobre isso, sabia?”, comentou ao sorrir a arcada clareada a laser para a recepcionista.

- Oi, Carmem! Lembra que comentei sobre a minha irmã?

- A que você sempre chama de mendiga?

- Er... quer dizer... Bom, trouxe ela pra dar uma geral.

- O que vai ser?

- Tudo! Cabelo, unhas, depilação, massagem. Dinheiro não é problema.

- Claro, querida! Depois conversamos sobre seu último cheque.

- Mas eu coloquei “bom para”...

- Depois, querida, depois! Fiquem à vontade.

Eulália nem se incomodava em contestar a irmã. Morava de favor em sua casa e sabia que todo aquele esforço não transpirava carinho fraternal. Dirce, a filha ideal, elegante e sedutora, deixava claro que um homem seria a única forma de amolecer a casca da irmã e, “se Deus quisesse”, casar a coitada e levá-la para longe do convívio com seu círculo de amigos.

Um latido chamou a atenção de Eulália. Afundada como um bicho acuado na cadeira de espera franziu a testa ao perceber o cachorro. Com laços presos à cabeça, o poodle pintado de rosa desfilava suas patas magrelas no chão escorregadio. Ouvidos mais atentos perceberiam, inclusive, o som fofo que escapava dos sapatinhos que protegiam as patas. A proprietária do bichano, “proprietária, não! A Belinha é minha filha” fechava os olhos a cada sorriso. “Meu charme”, dizia ela. “Botox”, confessavam todos ali.

No outro canto uma menina que aparentava catorze anos gritava ao celular. Balançando os braços raquíticos, “coisa de modelo”, dizia ela, exigia que sua professora de Pilates parasse com aquela frescura de “não posso dar aula hoje, meu pai sofreu um enfarto fulminante” e corresse para atendê-la depois da sessão de bronzeamento. Nem ouviu a resposta. Alternou para outra chamada, “coisa de celular hype”, e ficou gemendo declarações para o namorado de 25 anos, DJ, poeta e morador de Heliópolis. “Coisa de relacionamento moderno”.

Sob um globo metálico uma senhora obesa suava. “Vale o sacrifício, tudo pra me darem cinco anos a menos”, ofegava ao tentar manter a consciência no secador. “Que diferença faz para uma mulher de 70 anos?”, pensou Eulália. “To-da a di-fe-ren-ça!”, defenderia o cabeleireiro esmagado em uma blusa minúscula com os dizeres “Ready or not, here I come”. Presente de um cliente que prometera levá-lo para conhecer a Tailândia, mas que acabou sendo preso com papelotes de cocaína no estômago. “Ele jura que é inocente”.

O mesmo segurança da porta de vidro pronunciou um “gudi morningui!”, já prevendo as moedas estrangeiras que sobrariam em seu bolso. Com os cabelos picotados por alguma moda européia e shorts que realçavam a ausência glútea daquele povo, duas loiras colavam de um papel. “Oulá! Tuto bem cu vochêis? Brazilian wax pra nós dois”. Quinze minutos depois, a sala de espera já conseguia ouvir os gritos. Preparada e comissionada, a atendente corria para anotar o endereço da melhor loja de biquínis da região. “Agora vocês já podem usar estes biquínis brasileiros. Vão neste endereço e falem com a Joyce. Somente com ela, hein?”, escrevia no Google enquanto aguardava a tradução automática. No chão, fungando o cinzeiro, a cadela continuava a cuspir as tripas em latidos cada vez mais altos. “Belinha adora cantar”, dizia a dona. “A tinta rosa é tóxica”, lamentavam todos ali.

A cabeça de Eulália parecia explodir. Já com trinta e seis anos, entendia porque nunca fora atraída para estes lugares. Gostava de mexer na terra, algumas vezes dormia sem tomar banho por pura preguiça, penteava os cabelos com as mãos, raspava somente o bigode, espremia espinhas e comia pizza amanhecida. Era feliz assim. Ao explodir um grito desesperado, agarrou o poodle rosa e trancou-se no banheiro. Os funcionários tentavam consolá-la através da porta e o segurança apertava demente o rádio, “QAP, supervisor? QAP???”, choramingando diante da situação. Abrir portas era sua especialidade. Só.

Quase todos se aglomeravam em frente ao banheiro. O “quase” era sua irmã, vista pelo manobrista se escondendo sob uma caminhonete. Segurando o peludo rosa contra o peito e ajoelhada ao lado da privada, Eulália jurava que só sairia quando cancelassem todo os seus horários ou quando o poodle estivesse sem ar.

O que viesse primeiro.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 24/07/2007
Reeditado em 30/07/2007
Código do texto: T577981
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