NOITES PAULISTANAS

Sabia que era tarde, mas, enfim, sempre tudo se ajeitou, porque desta vez não haveria de se ajeitar. Estava uma noite chuvosa, do tipo cai e para, entremeado por finas garoas e vento cortante. Coisas da Capital em inverno típico. Mas não dispensava o bilhar com os amigos, isso de modo algum. Tomou uma última dose, para esquentar o caminho, antes de se aventurar pela avenida São João. Morava perto, não precisava de condução, levantou a gola do sobretudo, fechou os botões e sumiu na noite. Já tinha uma neblina se formando e apenas os mendigos e suas cabanas de papelão estavam nas ruas. Nem cachorro se via. Os bichos parecem mais espertos nessa época do ano.

Enquanto Maurício caminhava em direção ao Largo Sta. Cecília sentiu que o seguiam. Olhou em volta e não viu ninguém, mas continuou a ouvir pequenos passos e chegou a sentir uma presença. Parou e se virou. Qual não foi seu espanto ao ver uma cadelinha viralata, dessas com as tetas penduradas, uma orelha machucada e muito amor nos olhos. Tentou batendo o pé, mas a cachorra apenas sentou e ficou virando a cabeça. Não foi embora. Assim que retomou seu caminho voltou a ser seguido. Quando chegou na frente do prédio a cadela sentou e virou de novo a cabeça, como quem pergunta: e eu? Estava muito frio e não é porque era cadela, mas por causa do frio, até pensou em deixar entrar, mas não foi o que fez. Quando chegou no apartamento olhou para a geladeira e lembrou instantâneamente do animal. Fez uma cata das comidas que não queria mais e levou para a calçada. A cachorra ainda estava lá, mas assim que comeu foi embora. Quando voltou, com a consciência cristã de ter feito uma caridade, encontrou sua mulher enrolada em um cobertor, os olhos cheios de remela, o cabelo quase em pé. Cristina foi logo perguntando se aquela era uma hora decente para se ficar entrando e saíndo de casa, fazendo barulho e coisa e tal. Olhou para a cara dela e, com a voz calma, contou a estória da cadelinha. Foi tão inusitado, inesperado, que colou. Acabaram até fazendo sexo, aliás, do bom. Nem o frio os impediu. Maurício foi dormir pensando na cachorra que lhe tinha salvo a noite. Como dissemos: tudo sempre se ajeita.

Na noite seguinte, quando saiu do Bar & Bilhar, lá estava a ditacuja. Voltou a segui-lo e voltou a ganhar comida. A coisa foi indo, dia após dia, inclusive com a ajuda da Cristina que passou a comprar um pouco mais de carne e a pedir osso no açougue. A cadelinha ganhou um nome: Lalá. Primeiro porque Maurício e Cristina eram fãs das sobrinhas da Margarida (sim, isso mesmo, aquela, do Pato Donald) e segundo porque a cadelinha sempre estava lá. Senão poderia ter sido lélé ou lili, mas ficou sendo Lalá mesmo. Lalá passou a fazer parte da paisagem e até o porteiro, que normalmente era rabugento, passou a sorrir. Muitos moradores do prédio passaram a se cumprimentar de modo que o clima de convivência melhorou muito. Parecia mesmo o primeiro milagre de inverno de que se tem notícia. Passadas algumas semanas e Lalá apareceu com três filhotes a segui-la e o fato de ela ir embora, sempre levando algo na boca, passou a ter uma explicação. A família tinha aumentado e Maurício e Cristina até pensaram em se mudar para uma casa com quintal de modo a poderem adotar os quatro. Os três pequenos ganharam nomes, escolhidos por votação entre os moradores, que a esta altura já se quotizavam para alimentar o bando.

Quando veio a primavera Cristina foi atropelada e morta. Maurício desesperou-se. Somente na hora em que foi reconhecer o corpo no IML é que Maurício percebeu o quanto amava aquela mulher. Desesperou-se, chorou, perdeu o rumo. Andou por São Paulo, horas e horas, sem saber o porque nem para onde. Quando finalmente chegou em casa, Lalá e seus três filhotes estavam sentados, enfileirados, junto à entrada. Maurício pensou estar sonhando, mas os cães estavam tristes. Pareciam saber da desgraça. O clima no prédio piorou e alguns começaram a dizer que foi a chegada daqueles cães que mudou o destino. Uns passaram a hostilizar os animais e Maurício saia em defesa deles até que ele mesmo passou a não mais receber cumprimentos. Aliás, Maurício já não raciocinava adequadamente e perdeu o emprego também. Com o passar das semanas, Maurício foi acabando com a poupança que tinha, vendeu as coisas da casa, todas elas. Começou pelas roupas da mulher, depois passou para os móveis e os objetos, até que o apartamento ficou totalmente vazio. Com o aluguel atrasado Maurício foi despejado. Incrível, mas neste caso, a Justiça resolveu ser célere. Quando o Oficial de Justiça chegou, acompanhado de dois soldados, Maurício tinha apenas uma pequena mala que continha suas poucas peças de roupa e algumas fotos dele com a Cristina. Foi para a rua sem rumo, sem perspectiva. Perdido que ele só. Novamente notou estar sendo seguido e, com satisfação e até um afago, reconheceu e acolheu os cães. Passaram a perambular pelo centro, sempre dormindo sob o Minhocão, cujas lajes abrigavam um grande número de sem teto, sempre. Maurício e os quatro cachorros eram apenas mais um na multidão. Foram diluídos pela metrópole, fundiram-se no amálgama da grande cidade e desapareceram. Como já sabemos, tudo sempre se ajeita. Bem ou mal, mas se ajeita.