A Órfã [primeira parte]

Eu adorava lhe dar carona. Adorava o jeito que sua perna esquerda roçava a minha, o seu olhar de despedida, sincero e agradecido, assim como a despedida última de suas nádegas, pouco antes de se afastar e desaparecer na próxima esquina. A porta se abria e uma brisa fresca balançava os seus cabelos, então eu acordava de um sonho eterno e compreendia que era chegada a hora de nos separarmos, de seguirmos outra vez por caminhos distintos. Eu, para uma ilha isolada e sombria de minha existência, ela, por sua vez, para os jardins floridos do paraíso.

"Brigada", ela balbuciava, pois era hábito seu comer as palavras.

- Foi um prazer!

Tive a liberdade de segurar a sua mão em uma dessas ocasiões, e acariciá-la com o polegar. Tentava-lhe como a serpente original, injetando-lhe na mente novas ideias, sensações. Depois me arrependia, mas apenas em parte. Jovem e bela demais para ser sensata, ria-se sem nada dizer. Costumava repetir que eu era um palhaço de terno e gravata, o que fazia uma pulga beliscar a minha orelha. Eu quase nunca usava terno, gravata tampouco; e ser comparado a um palhaço me deixava aborrecido.

- Apenas uso gravata durante as reuniões. Logo a tiro.

- Cultos.

- Sim, cultos. Sou um pastor auxiliar. Raramente faço as pregações.

- Sermões.

- Sim, sermões.

Quando questionada sobre a existência de um possível namorado, parecia esconder o jogo, fechar-se em si, como um ouriço, e desconversava. Embora corresse o risco de parecer impertinente, insisti:

- Deus é poderoso e mais que qualquer outro pode colocar alguém na sua vida, como uma peça perdida do quebra-cabeça, um homem escolhido pelo próprio Deus! O que acha?

Usava uma blusa azul. Franziu a testa, com ar de deboche.

- Como quando decidiu dar Eva a Adão? Presente greco-judaico. Não, brigada.

Seu cinismo me irritava, sobretudo seu ceticismo. E o que dizer da possibilidade de seu namoradinho ser ateu e comunista, como supunha a avó durante uma conversa que acontecera quatro dias antes? "Que estranho hábito o ser humano tem de querer beijar pessoas bonitas, não acha, meu querido irmão? Pois bem, queriam se beijar simplesmente porque se achavam bonitos!" Só de pensar um calafrio repentino me percorreu a espinha.

- O que andam ensinando nas escolas hoje em dia? Que Deus é um rato morto preso à ratoeira do cientificismo? Que o homem, a coroa de sua Criação, evoluiu de uma poça insossa?

- O de sempre. Hedonismo para os ricos, niilismo para os pobres.

Quando lhe citei os crimes que haviam sido feitos por comunistas, perguntou-me quantos crimes os heliocentristas haviam cometido na última década.

Era uma pergunta, no mínimo, inusitada.

- Quero ter um argumento contra o heliocentrismo. Josué parou o sol, não parou? Pois bem, temos dois argumentos. Um histórico e um bíblico - suspirou, prendendo os cabelos, e concluiu num tom mais baixo: - Duas anedotas.

Fiz um comentário a respeito de uma pedestre que estava "praticamente nua". Ela riu-se.

- Todos estamos nus por baixo da roupa. Inclusive você. Não se sente constrangido por estar nu por baixo da roupa? Ouvi dizer que Deus adora espiar mulheres nuas no banheiro.

- Espiar não, vigiar.

- Se gostasse mesmo de vigiar, Marion Crane ainda estaria viva.

Quando lhe perguntei quem era Marion Crane, faltou cair do assento.

- Oh, céus! Como você é antiquado! Ou será que também nunca ouviu falar em Hitchcock?

- Claro que eu já devo ter ouvido falar nesse tal de Hi...

- Hitchcock!

- Exatamente.

Passou então a falar de seus filmes favoritos.

- Acho Cate Blanchett uma graça, mas sua vida deve ser um tédio. A cada dez minutos ouvir algum gracejo, algum arroubo ou declaração apaixonada. Quem quer ter uma vida miserável assim?

Desabotoou a blusa e vendo o meu reflexo no espelho, disse:

- Não pense que eu esteja afim de fazer amor com você. Apenas estou com calor.

O sinal abriu. Narrei o que se passara durante uma visita feita a uma de nossas amigas e comentei sobre a sua gravidez sem entrar em detalhes. Uma mãe solteira e de primeira viagem, sem muitas expectativas. Era um caso delicado. Sorte nossa que não estávamos no lugar dela.

- Sorte nossa não estarmos no lugar dela - sugeriu, lendo os meus pensamentos.

Assenti. Tentei ser otimista:

- Senti um chute. Acho que será um jogador de futebol!

- Ou apenas gostará de chutar a esposa, como o pai.

Sugeri que ambos fossemos visitá-la algum dia. Concordou com um aceno de cabeça demasiado melancólico.

E como era bela a sua expressão melancólica!, os seus olhos tristes!, a sua aura de pura misericórdia!

Preferiu voltar a falar em filmes.

Eu, que costumava fazer separação entre filmes de guerra e filmes de amor, estava disposto a entrar de cabeça em uma guerra de amor.

Pediu-me para que parasse o veículo perto de uma padaria. Um rapaz alto e de cabelo crespo abriu a porta e foram para o banco de trás. Chamava-se Tiago e usava uma camiseta com o rosto de Noam Chomsky.

Animada, ela parecia dividir o carro com um beatle ou com outra celebridade atemporal.

Ele lhe mostrava um álbum de fotos.

Acariciou-a no queixo e sugeriu:

- Detesto quando mulheres bonitas me dão atenção, cravando os olhos em mim e me impossibilitando de espiar os decotes delas. Olhos ágeis e espertos caem bem aos homens, mas não às mulheres.

- Tinha acabado a camisa do Che Guevara? - perguntei.

- Está secando.

- O que exatamente está secando? Você está falando da água ou do sangue?

- É um símbolo - disse ela. - Você é cristão. Os defeitos de Che são as virtudes de Moisés? As traves nos olhos de Fidel são lunetas nos olhos de Elias?

- Eles foram escolhidos por Deus.

- O que quer que eu diga afinal? - tornou ainda.

- Que tal tentar: "Viva a democracia, morra a ditadura do proletariado!"?

O rapaz coçou a cabeça. Inclinou-se para a frente.

- A ditadura do proletariado não é uma ditadura apesar do nome. Deve-se levar em consideração o que o termo significava para Marx, assim como o conceito, que não fora criado por ele. Os proletários são maioria na sociedade, ou seja, estamos a falar em uma democracia onde os meios de produção são socializados. Para Marx, a própria democracia envolvia a ditadura de uma classe sobre outra.

Impressionou-me a sua oratória, assim como a sua voz grave e aveludada, agradável como música para os ouvidos. Uma ambulância passou com sua sirene ruidosa, do outro lado da rua.

Prosseguiu na primeira oportunidade:

- A empresa onde você trabalha não é democrática, o seu patrão manda em você; a sua casa não é democrática, os seus pais mandam em você; a igreja que você frequenta não é democrática, os pastores e padres mandam em você; as ruas pelas quais você anda não são democráticas, os policiais mandam em você; os políticos que são eleitos ano após ano não são democráticos, são financiados por uma burguesia que deseja manter o poder. Onde está a "democracia" em meio a tudo isso? - perguntou, envolvendo a garota com o braço, e acrescentou: - Não sei se você já percebeu, amigo, mas a palavra "democracia" não aparece na Bíblia.

Embora discordássemos em alguns pontos, era inegavelmente muito simpático.

- Vivian sempre fala de você - comentei.

Ela ficou vermelha e implorou para que eu me calasse.

Surpreendentemente ele respondeu que ela também falava de mim, "não o tempo todo, claro, mas falava".

- Bem ou mal?

- Bem, mal, bem mal, mal bem. Contudo, sei que é uma boa pessoa! - exclamou e, encarando-a, perguntou: - Como você o definiria?

- Um sujeito simpático, de opinião, mas que extraordinariamente nunca tem nada relevante a dizer.

- Como assim nunca tenho nada relevante a dizer?

- Viu?

- E quanto à aparência? Você não disse nada sobre a minha aparência.

- Seria melhor se fosse "desaparência".

O rapaz riu, ela também, eu permanecia confuso.

- Do que exatamente estamos rindo? - perguntei.

- Eu não estou rindo com você, estou rindo de você.

- Você disse o contrario!

- Não, não, foi o que você entendeu mesmo. Estou rindo "de você", e não "com você".

Uma brincadeira, com certeza, mas ouvir aquilo da boca dela em outros momentos seria um verdadeiro tiro no peito. Lembrei-me da vez em que a conhecera. Uma linda criatura tomava um sorvete, com os cotovelos apoiados na janela, de onde olhava para a avó e os vizinhos, conversando no quintal. De repente a velha voltou-se para a janela, indignada, e perguntou em voz alta:

- "Sua mãe não lhe ensinou a não chupar sorvete em público?"

Esboçou mostrar a língua, mas não o fez, e desapareceu com uma careta infame, porém adorável.

Paramos para encher o tanque. Um menino e uma cadelinha brincavam com uma bola, do outro lado da rua. Driblavam, corriam, caiam, levantavam e caíam novamente. Chamei-lhes a atenção para as costelas visíveis do pequeno animal:

- Conheço muitas garotas que invejariam a magreza dela.

Fora o rapaz anarquista que se afastara de nós e se aventurara a saltar de uma ponte, perto dali. De baixo, gritou que a água estava maravilhosa. E de fato parecia estar. Mas me faltou coragem para pular.

Minha musa estava eufórica. Por ciúme, disse-lhe ter visto a sua avó e sobressaltou-se. Não era ela, mas outra senhora, velha também. Disse-lhe ter me enganado.

Recuperando o ar zombeteiro, sugeriu:

- Você gosta de trepar com velhas? É ajeitada! Não? E não pretende mudar de opinião?

Recusei com a mais azeda de minhas caretas.

- Então quando ficar velho deixará de trepar com a sua mulher? Ou aprenderá a sentir prazer em trepar com uma velha também? É uma pena, pois poderia ficar fazendo amor comigo até virarmos dois velhinhos, cegos, surdos e enrugados.

É claro que zombava de mim. Gostava de me ver vermelho, como a bandeira do seu partido comunista, e causar escândalo e aversão. Jamais poderia dizer algo desta natureza diante da avó, o que a fazia se sentir diferente das garotas tidas como livres e normais, e eu era uma representação de tudo aquilo o que detestava na senhora que, aos olhos dela, era uma bruxa que a mantinha aprisionada num castelo de velhas ideias.

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