Carne Macia

Bocejou cerimonioso. Esquentou as mãos grossas no bolso empelotado da calça preta. Bocejou de novo, deixando escapar, desta vez, parte da saliva. Enxugou o excesso com a própria língua. Nem pensava em usar as mãos. Não agora que sentia a palma gelada formigar o derretimento do tecido vagabundo. Os ossos estalavam menos quando protegidos do sopro provocador da madrugada.

Timóteo fingia acompanhar a movimentação suspeita com olhar compacto. Gostava de imaginar as doze horas que entupiam seu trabalho vigorosamente irracionais. Desconfiava da inocência, suava nas costas quando se sentia ameaçado, memorizava a conversa dos outros. “É claro que amo você, querido!”, “vou sair tarde do escritório”, “não sei a que horas termina a reunião”, escorregavam nos gomos do seu cérebro. Quando perguntavam com o que trabalhava, pouco se esforçava para explicar. Sem nunca mirar nos olhos resmungava com voz grave, “hotel... segurança... madrugada”.

O cacoete de raspar os dentes e engolir o pó que atritava dos caninos o presenteou com uma perfuradora dor de cabeça. Não saberia viver sem o batuque doloroso que ritmava seu turno. Gostava da forma como os ossos da face saltavam a cada movimento. “Você não é magro demais pra ser segurança?”. Timóteo, que odiava o nome tanto quanto o emprego, desprezava sinceridades pueris. “Você sabe como são as crianças, né?”, antecipavam os pais para resgatá-lo do constrangimento.

Timóteo não sabia. Aos onze anos, já com a estatura que o definiria, tornara-se homem ao atravessar uma faca lambuzada com geléia de mocotó na coxa do seu pai violento. “Agora sim, acredito em papai do céu...”, disse calmo ao enxugar as lágrimas roxas da mãe. Anos depois o mesmo choro apresentou um novo namorado. “Ele é diferente, filho”, jurou a mulher que o arremessara ao mundo. “Mentira, a maior tentação para quem bate é a carne macia de quem gosta de apanhar”, dizia seu padrinho ao virar as últimas páginas de qualquer Nelson Rodrigues. “Mamãe gosta de apanhar...”, concluiu Timóteo ao pedir carona com a roupa do corpo. Antes, raspou a lataria cor de manga do Fiat 147 do recém chegado.

“O senhor pode me ajudar com as bagagens?”. A falência em que o hotel se encontrava exigia de Timóteo que extrapolasse suas habilidades de segurança. Carregava malas, manobrava carros e, de vez em quando, puxava os lençóis de algumas camas extras. Alguns trocados faziam o esforço valer a pena. Mas, no fundo, sabia que não tinha preço um homem de terno, quarenta e poucos, esticando lençóis para crianças birrentas enquanto as camareiras transavam com seus maridos.

“Prometo que vou saber recompensar”, soltou a mesma voz com um sorriso provocante. Timóteo agarrou as malas da mulher que insistia em sorrir e caminhou sem dizer nada. Nem mesmo a eternidade do elevador mudava sua expressão. “Você é sempre tímido assim?”, tentou a loira de cabelos enrolados. Timóteo respirou fundo e continuou encarando a etiqueta da bagagem. “Carmem S. Neves”. “Não parecia nome de vagabunda”, pensou.

Apartamento 704. Sétimo andar. “Adoro o número sete, dá sorte... Pode colocar as malas dentro do quarto, por favor?”. Mal havia terminado de equilibrar as bagagens sobre a cama, sentiu as costas serem cravadas pelas unhas vermelhas de Carmem. Permaneceu imóvel enquanto ela molhava seu pescoço com a saliva quente. Os botões da camisa eram estourados com força. O segurança não se rendia, mas não protestava. O corpo bronzeado de Carmem contrastava com sua pele sem vida. O beijo ameaçava tirar pedaços. A tatuagem na altura da cintura recebia atenção especial da sua boca de dentes curtos. Ela retribuía alisando a cicatriz em seu ombro. Timóteo transava sem ruídos. O celular dela tocava, o rádio dele apitava. “Me bate!”. Ele sentiu as pernas tremerem. “Vai, me bate com força!”. Suas mãos grossas apertaram as coxas bronzeadas de Carmem. “Me bate! Me bate!”.

Com um soco desastrado, Timóteo arremessou o corpo nu de sua amante ao chão. A respiração descontrolada parecia defeituosa. O sangue não demorou a atropelar as narinas de uma Carmem imóvel e o telefone do quarto já disparava irritante. Talvez os hóspedes reclamando do barulho, talvez o recepcionista querendo participar da farra. Timóteo abandonou o toque do aparelho e soprou o punho que ardia trêmulo.

Definitivamente, Carmem S. Neves não tinha a carne macia.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 31/07/2007
Reeditado em 31/07/2007
Código do texto: T587207
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