Percepção

Uma gota cai. Dentro do Café uma garotinha percebe a gota se esvaindo pelo vidro e acha engraçado quando uma garota corre pela chuva com uma revista sob a cabeça. Ela sente vontade de correr também pela chuva mas assim que sai à porta é impedida pela mão de uma mulher em seu braço.

Outra gota cai. Ela percebe o tempo fechado e não consegue correr a tempo de pegar um táxi. Usa apenas uma revista que comprara a pouco tempo pra poder se proteger. “Que droga” ela pensa “...tenho uma entrevista daqui a pouco”.

Mas uma gota cai, dessa vez um jovem numa moto, com o buquê de flores nas mãos molhados pela chuva “Vai dar tempo, vai dar tempo...”. Ele não teme e pensa que a chuva não passa de uma simples nuvem passageira, o que faz acelerar mais tendo a sensação de facas cortando sua jaqueta pela intensidade dos pingos.

Não muito distante dali, no aeroporto está uma garota de 20 e poucos anos de mãos dadas com seu mais novo (grisalho) namorado. Ela sabe que terá de partir mas está confiante. Ela o beija e promete não demorar muito. O beija novamente e espera ele sair de sua linha de visão para mandar uma mensagem pro chato que a atormentava “Não me procure mais!! ACABOU!”.

Ele está tão concentrado em chegar logo que mal sente o celular vibrar em seu bolso “vai dar tempo. Vai dar tempo”. Talvez desse mesmo se não fosse a garota que passa correndo a rua sem olhar pra aquele trânsito louco “o que ela pensa que está fazendo?” ele freia bruscamente e se joga para o lado. “Ah! Meu Deus!” ela pensa antes de esperar sentir o impacto da moto, mas só ouve um baque e um zumbido de algo raspando o chão. Logo sente uma cheiro forte de gasolina. É possível ouvir um grito fino dentro da cafeteria.

Muitas pessoas ficam ao redor e saem pra olhar. Ela caída no chão pelo susto e com a visão embaçada avista um garoto loiro de olhos castanhos andando em sua direção. Ele vem mancando. “O garoto da moto” ela pensa. Ele lhe estende a mão e lhe pergunta “você está bem?” Ela pega sua mão por reflexo e meio tonta não consegue responder. “Vamos pro hospital” ele fala tediosamente. “Não. Tenho uma entrevista daqui a duas horas” ela responde.

Ele olha pra ela e suaviza sua expressão (antes de reprovação).” Tudo bem” fala resignado” eu te levo” fala ele levantando a moto e chutando ela para dar a impressão que fazendo isso iria funcionar. Ela olha pra ele desconfiada e não acredita que aquela moto possa ir a lugar algum depois daquela queda. “Tem certeza?” fala ela apontando para a lataria. “Hum. Na verdade é melhor pagar um táxi ou pegar um ônibus” “Ônibus” responde ela.

E lá vão os dois. Ele com seu buquê de flores amarelas ainda na mão (as flores preferidas dela ou) “pelo menos eram antes do término” ele pensa ao checar a mensagem no celular antes de guarda-lo no bolso. Ela com sua pasta cheio de papeis, tira da bolsa um pente e um mini espelho no intuito sentir-se menos desgrenhada.

“Pra onde você tá indo?” ela pergunta pro estranho garoto ao seu lado.

“Pra lugar nenhum.” Ele responde sem olhar pra ela.

“Tudo bem. Pra onde você estava indo quando quase me atropelou?”

“Pro aeroporto. Ver minha ex. Mas agora ela já foi” ele fala sem olhar pra ela e baixa a cabeça.

Mais gotas começam a cair. Um silêncio constrangedor paira. E ela sente vergonha por ter perguntado qualquer coisa.

“E você? Pra onde está indo?” ele pergunta ainda de cabeça baixa olhando para ela dessa vez.

“Entrevista. Procurar emprego. Qualquer coisa assim”

“Isso que você quer?” ele indaga

“Isso o quê?” ela pergunta confusa

“Esse emprego é o que você quer? O você realmente quer?”

“Não sei” ela suspira “minha mãe acha que seria bom pro meu currículo e eu tenho que ajudar em casa. Não dá pra viver só as custas deles e ...”

“...é isso que você quer? Você sabe que poderia fazer coisa melhor que lhe agradasse, que lhe trouxesse paz... Por que eles não podem viver por você e você não pode culpa-los por sentir frustação depois. A única culpada será você mesma”

Antes que pudessem se dar conta a parada estava próxima e eles descem do ônibus após dar o sinal.

A empresa parecia um verdadeiro palácio de tão linda e organizada. Umas secretárias vinheram atendê-los, e logo encaminharam ela para a entrevista enquanto ele aguardava fora.

O homem que a atenderia estava na casa dos cinquenta. Um homem de boa aparência (sem dúvida) e charmoso. Deu boa tarde a garota a frente dele, apertou sua mão e começou as perguntas.

Perguntou por seus cursos, seus interesses, seus antigos trabalhos; ela já sabia de cor o que falar. Mas aí no final da entrevista ele chegou a pergunta de porque ela escolhera àquela empresa e se era realmente o que queria.

Antes que pudesse responder uma garotinha irrompe na porta. A pequena vem saltitando e mostrando tudo que fizera aquele dia, ele a beija na testa e pede para que sua mãe a tire de lá.

Ela insiste em ficar mas seu pedido não é atendido e a criança sai com um choro familiar aos ouvidos da entrevistada.

Ela lembra de tudo que passou aquela manhã e de todos os perrengues em sua casa e de como ela só queria calmaria no meio desse caos. Lembra do garoto estranho que veio com ela no ônibus, e como parecia dizer exatamente o que precisava ouvir mas que ela renegava a si mesma, pelo bem dos outros.

“Não é que não queria trabalhar aqui. É só que aqui não é onde quero estar.”

Ela sorri para o homem grisalho. Ele sorri de volta e aperta sua mão agradecendo a sinceridade e prometendo manter contato.

Ela sai da sala radiante como se houvesse tirado um peso das costas e sorri para seu mais novo amigo. “E aí?” ele quer saber “Fiz o que tinha de fazer. Fiz algo por mim” ela responde orgulhosa. “Então você merece essas flores. Pela coragem” ele sorri para ela e as entrega. “Tudo é questão de percepção” ela pega as rosas, as cheira e o abraça dizendo em seu ouvido “Obrigada.”

A chuva que já havia parada dá espaço para o sol que renasce grandiosamente no fim daquela tarde.