Resíduos

É incrível como uma conversa entre amigos pode apertar botões que há muito não eram acionados. E tais botões acessam a lembranças de todo tipo. Enquanto eu pensava nisso, nós íamos para casa naquela sexta-feira fria de outono. Ele, feliz com as minhas atitudes de afeto, cobertas com uma doce camada de condescendência. Eu, vagando em pensamentos soltos que flutuavam entre preocupações e acontecimentos antigos. Chegamos à casa e lá tomamos a ceia. O sabor do lombo estava excelente; tão bom que poderia se equiparar ao meu sorriso perfeito, enquanto olhava para aquele rosto marcado pelo tempo; rosto esse que mostrava tantos percursos de estradas conhecidas e caminhos rochosos e nunca antes visitados por mim. Meu rosto também tinha tais regiões; entretanto, a maioria delas não lhe era estranhas. Naquela noite, especificamente, eu me sentia diferente. Havia algo no ar. E tal coisa estava dentro; não fora. Eu sabia o que era, mas fazia de tudo para que não viesse à tona, pois no fundo daquela garrafa de vinho, havia resíduos. Fiz de tudo para manter as aparências antes, durante e depois do jantar. Como era de costume, ao terminarmos aquela deliciosa refeição, fui lavar a louça, enquanto ele me observava. Ele questionou o meu silêncio e, entre pratos e talheres, eu trouxe eufemismos ao me expressar sobre aquilo. Disse-lhe que nada havia de errado e aleguei cansaço físico e mental. Ele pareceu entender e dali a pouco me deu um beijo no rosto e foi para o nosso quarto. Aquela sensação desagradável crescia em mim, ao passo que nele, um sentimento de admiração se mantinha pela minha doçura e dedicação. Não queria acordar o tal monstro interno, por isso ao terminar de lavar toda aquela louça, eu abracei o ritual de encher nossas garrafas de água para que, caso sentíssemos sede durante a noite, bebêssemos daquele líquido vital. Então, tomei um banho bastante relaxante e, mesmo ali o tal bichinho fazia cócegas no meu coração remendado pelo tempo. Ainda assim, as lágrimas se mantinham presas aos meus olhos. Acabado o banho, subi para o quarto, fiz-lhe um carinho no rosto, dei-lhe um beijo na boca e virei para o canto, em posição fetal. Ele veio para o meu lado, beijando-me a cabeça e mais uma vez questionou a minha falta de palavras. Notei que já não podia evitar as emoções, então, a represa arrebentou, assemelhando-se a uma cachoeira, posteriormente. Sua atitude foi de querer saber o motivo do meu pranto copioso. Eu, me afogando em toda aquela água, tentava me salvar, sem sucesso. Não conseguia dizer coisa alguma, enquanto os olhos dele demonstravam sua real preocupação para comigo. Num instante a chuva cessou, então, limpando meus olhos, eu pude lhe contar o que estava sentindo. Percebi que sua feição mudou e que outra chuva havia começado; agora, a dele. Olhou-me decepcionado, por entender que ainda havia um morto entre nós. Entretanto, eu sabia que, dentro dele (fosse através de canções, cartas, vídeos, fotos...) ele realmente mantinha, assim como eu, o passado entre nós. Sabendo que não há borracha que possa apagar o que já foi feito, ele, mais uma vez, pediu-me desculpas e eu apenas lhe dei um abraço forte, como se quisesse esquecer a minha posição naquele ranking tão importante, afinal o segundo lugar é amargo e sempre será.

Tom Cafeh
Enviado por Tom Cafeh em 24/03/2017
Reeditado em 05/05/2017
Código do texto: T5950806
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