Ruth encara a UTI

Paralisada na frente da Unidade de Terapia Intensiva (UTI), Ruth está com os nervos à flor da pele aguardando para visitar seu pai. Seu patriarca foi acometido pelo passar do tempo e suas cicatrizes denunciam os percalços da vida. Já em idade avançada foi aplacado por complicações numa cirurgia no aparelho urinário pegando à todos de surpresa. As fatalidades não anunciam sua chegada e quando o quadro clínico se agravou, a família conheceu de fato a rotina da espera angustiante nos corredores do hospital. Ruth se comoveu ao vê-lo no leito inconsciente e entubado em aparelhos que ela mal conseguia decifrar. Repetia sem parar, “logo o pai que sempre foi forte agora está nesse estado...”, interpelava os médicos e enfermeiras para saber como estava seu estado de saúde e rezava com devoção em todos os momentos para afugentar a sensação de impotência diante da incerteza que mora na esperança ao menor sinal de reação. Nas idas e vindas ao hospital, Ruth começa a enxergar a vida com outros olhos, fica mais sensível e contemplativa, ao mesmo tempo angustiada e confiante na expectativa de receber alta o quanto antes. Pela janela do ônibus no trajeto que fazia cotidianamente, contempla a cidade e seus habitantes, o vai e vêm de carros, transeuntes apressados, pessoas com conotações multi-raciais, ricos e pobres com idades diferenciadas, os privilegiados e os excluídos convivendo numa tensão social camuflada pelos gestos e olhares. De repente, um prolongado engarrafamento tranca a avenida, buzinas e xingamentos alimentavam a impaciência dos passageiros. Sem titubear, Ruth decide ir caminhando para o hospital e se depara com uma mobilização dos servidores públicos e por um instante rompe a cápsula de preocupações e se envolve nas questões políticas do seu país. Percebe que as reivindicações eram contra o desmonte do Estado e um pacote de terceirizações que ameaçam todos os direitos sociais e trabalhistas conquistados historicamente. Se apavorou com a reforma da previdência que penaliza os idosos que trabalharam e contribuíram por toda uma vida para uma nação cujo os governantes esquecem que governam para a maioria da população e não para benefícios próprios. A saúde do país está em “estado de calamidade” colocando o descaso do Estado como o verdadeiro genocida. Tomou parte sobre as “reformas” nas políticas educacionais, a falta de recursos na educação básica e as perseguições ao livre pensamento, o avanço do neo conservadorismo que propaga ódio e brutalidade. Enquanto caminhava pela calçada, Ruth filosofava em seus pensamentos e conclui em voz alta: “ A nossa sociedade está na UTI, é possível ver os sintomas em todos os lados! Esclerosados, paranoicos, somos formiguinhas em um espectro infinitamente maior, cheios de convicções e ideais que são construídos durante anos e que se esvaem no leito de morte...” Começou a refletir sobre as feridas que não cicatrizaram durante a História, da reforma agrária, as questões dos direitos das populações tradicionais indígenas e quilombolas, a crise da segurança pública e a falência do sistema prisional, a descrença na estrutura política e a diluição da cidadania, a depredação dos espaços públicos e a degradação ambiental. Momento singular na história da humanidade onde reagimos as patologias sociais ou sucumbimos embebidos na arrogância individualista. Vivemos o estado de histeria coletiva e pânico e o abandono de tudo o que é público. Ruth fazia uma relação entre os mais de 12 milhões de desempregados e o aumento da criminalidade e o casos de violência urbana. Hoje, banaliza-se o envenenamento dos alimentos e tornou-se habitual as noticias de impunidade, atitudes anti-éticas e sonegação de impostos enquanto acirra-se o abismo de desigualdades sociais. Chega no hospital, bebe água antes de entrar e limpa suas mãos no álcool em gel ao lado da porta de entrada da recepção. Respira fundo, com a cabeça a mil e recolhe-se na introspecção dos cuidados com o amado pai. Observa seu semblante sereno, sedado no leito da UTI, e valoriza os pequenos detalhes que a vida proporciona, um gesto, uma palavra ou um olhar. No seu lugar pode ser qualquer um de nós amanhã, necessitando de transfusão de sangue, cuidados médicos e nessas horas somos todos iguais, carecendo de atenção, carinho e amor!

Publicado no Jornal A Folha/ Torres.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 30/03/2017
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