UMA FAMÍLIA

O programa religioso da tevê toca a canção “Oração da Família” e repete o refrão:

“Abençoa senhor as famílias, amém! Abençoa senhor, a minha também...”.

Sílvio acha muita graça da canção, pois dali há uma hora, sairá de sua casa. Seu relacionamento com a esposa está aos cacos e agora, de súbito, escuta este hino religioso celebrando a família. É uma ocorrência que supõe: ou Deus não existe ou ele é muito irônico.

Sílvio faz as malas, mas o refrão continua em sua cabeça:

“Abençoa senhor as famílias, amém! Abençoa senhor a minha também...”

A dúvida também permanece na cabeça de Sílvio: a coincidência da canção provará a existência de um Deus irônico. Sílvio chama um táxi pelo telefone, no mesmo momento sua esposa grita do quarto:

- Palhaço! Eu não dependo financeiramente de ti!

Sílvio sente um embrulho no estômago e não quer pensar em mais nada. Depois resolverá a questão dos filhos, a divisão dos bens. Agora não vale a pena qualquer discussão, no entanto, o refrão do hino é uma pendência:

“Abençoa senhor as famílias, amém! Abençoa senhor, a minha também!”

Sílvio coloca na mala, apenas as coisas essenciais: camisas, cuecas molhadas, uma lâmina de barbear. Pegou todos os documentos e deixou alguns livros. Livros são palavras e mais palavras que ficam mais inúteis na indeterminação de certos momentos. A esposa do quarto ainda tem tempo de dizer:

- Eu não vou voltar atrás nada! Porque não saiu antes?

Sílvio decide morar na casa de um irmão até organizar alguma coisa em sua vida. Espera a chamada do serviço de táxi que, depois de 15 minutos, avisa estar na porta. Sílvio não olha para trás, mas antes de sair sente a mágoa da esposa por algum motivo. Terá sido dinheiro, o tempo, os vizinhos? Entretanto, o refrão da canção deixa tudo confuso.

“Abençoa senhor as famílias, amém! Abençoa senhor, a minha também!”

Deus realmente não deve existir. Sílvio entra no táxi, depois de cinco minutos, resolve desabafar com o taxista sobre a separação:

- Esta mala tem uma razão... Estou deixando a minha mulher depois de dez anos de casado.

O taxista ainda responde:

- Jesus sabe o que faz...

Sílvio lembrou da canção e assobia o refrão até a casa do irmão que provavelmente não será pego de surpresa. No caminho ele ainda pensa em uma voz alta divina declarando:

- Homens sempre devem fazer vasectomia!

DO LIVRO: "TOUROS EM COPACABANA"

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 01/04/2017
Reeditado em 23/05/2018
Código do texto: T5957844
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