Bananas, laranjas e maçãs

Voltavam do museu e, agora, parados em frente a uma loja localizada na rua Itatiba, número 391, assistiam atentamente a um evento que se revelou ser uma tourada. A TV sem som, apenas imagens.

O céu estava encoberto e o vento uivava ao passar por entre as paredes e muros, mas não fazia frio.

Cibele franzia a testa, a boca entreaberta. O cachecol xadrez a sufocava. Uma sensação de impotência a diminuía. Jorge a observava pelo rabo do olho, com piedade.

"Eu sempre torço para o touro", ele disse.

"Eu também", ela respondeu depois de um tempo e, olhando para as pessoas despreocupadas no restaurante do outro lado da rua, acrescentou: "e torço para o boi e para a vaca quando alguém come carne. Desejo que morra engasgado. A morte de um onívoro é bela e moral, como a de um fascista"

Apesar da doçura que normalmente exprimia, dor e ódio disputavam a sua face e a sua voz. Controlou-se. Sugeriu:

"Vamos"

Jorge assentiu com um movimento de cabeça.

Passaram na feira antes de atravessarem o viaduto; a moça corria os olhos de uma barraca à outra, entretanto tudo o que queria àquela altura eram bananas, laranjas e maçãs. Guardou-as numa sacola antes de prosseguir.

"Se as pessoas tivessem três pernas e você nascesse com duas, seria feliz tendo apenas duas pernas?"

"Que tipo de pergunta é essa?", interrogou o rapaz.

"Ora", tornou Cibele, erguendo os ombros. "O tipo de pergunta que se faz quando se quer uma resposta"

Calou-se, mordendo uma maçã.

Jorge apressou o passo para alcançá-la. Saltou uma poça que aparecera diante de si.

A negrinha meteu a mão no bolso da blusa e apanhou o celular.

"Meu comentário teve mais curtidas que o seu", tornou Cibele, a boca cheia.

Mostrou o aparelho ao pequeno, que disse:

"Seu comentário teve mais curtidas estúpidas que o meu!"

"Não mesmo", ela contestou. "Um poeta e uma professora curtiram o meu comentário"

"O melhor jogador de bolinha de gude e o garoto mais rápido do bairro curtiram o meu!"

"Jogadores de bolinha de gude e corredores não sabem nada sobre poesia"

"A poesia não sabe nada sobre a poesia"

Calaram-se. Jorge hesitou em tocar no assunto:

"O que faremos agora que mamãe morreu?"

Ela respondeu secamente:

"O de sempre"

O rapazinho baixou a cabeça, fitando o chão.

Ele disse:

'Você é hipócrita"

"Por quê?"

"Sorri por fora, mas é triste por dentro"

Cibele tirou uma fruta da sacola e mostrou a ele.

"E o que me diz da laranja, que tem gomos no interior em vez de mais casca?"

Apreciava este tipo de ironia.

Correram assim que avistaram o trem parado na estação, mas o gigante metálico fechou as portas e partiu segundos depois do sinal abrir.

Jorge suspirou, desapontado, com as mãos nos joelhos. Teriam que esperar o próximo. Cibele disse, tocando-lhe o ombro:

"Trens são como pombos. Se você correr, eles fogem"

Compraram os bilhetes; outro trem chegaria quinze minutos depois.

Trem lotado, não havia lugar para sentar.

Uma garota que vestia uma blusa azul ocupava um assento preferencial. Depois de avistar uma idosa em pé, Jorge, que não era hábil no uso da palavra, perguntou à garota indiferente:

"Você é deficiente?"

A garota, por sua vez, deve ter se sentido ofendida, pois respondeu:

"Sim, sou deficiente; deficiente moral. Sabe o que quer dizer este desenho aqui?"

"Mulher grávida"

"Equivoca-se. Alguém com rei na barriga; no caso, eu. Sabe o que este desenho aqui quer dizer?"

"Idoso"

"Errado"

"Tem uma bengala"

"Um cajado"

"É muito pequeno"

"Jovens podem usar bengalas. Não há leis que os proíbam"

"Sim, mas são os velhos que usam. E você não tem bengala"

"Certo, tem razão; mas eu não concordo com voce"

E ficaram por isso.

Os irmãos desceram na quarta estação.

Desceram as escadas e desviaram de uma mulher e de um homem elegantes que conversavam numa calçada. A mulher, que ajeitava os cabelos castanhos com um das mãos, dizia:

"Acabar com a fome no mundo é um projeto do anticristo. Pode não parecer, mas é um ótimo sinal ainda haver gente morrendo sem ter o que comer. Que as coisas continuem assim por um bom tempo!"

O homem disse-lhe:

"Eu, diferentemente da irmã, mal posso esperar para que aconteça a Terceira Guerra Mundial! Eu mesmo a causaria se pudesse..."

Subiram no ônibus. O motorista era uma mulher gorda e o cobrador um homem magro. O cobrador mascava um chiclete e batia papo com um passageiro; pareciam ser amigos de longa data.

"Eu sou parcialmente assexuado", disse o cobrador.

"Eu não"

"Você não é nem um pouco assexuado?"

"Absolutamente!"

"Sério? Nem o cu?"

"Meu cu é herero, totalmente hétero"

Com um sorriso malicioso, o cobrador perguntou:

"Ele só se permite ser penetrado por dedos femininos?".

O ônibus partiu.

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