Bananas, laranjas e maçã

Em outro ônibus, quatro anos depois.

"Eu não preciso mais de você. Tenho um aplicativo que simula a sua voz e a sua personalidade; é inclusive uma versão mais inteligente e sofisticada..."

"Mas eu te amo!"

"Tão fingidamente quanto este aplicativo me ama"

"Gatinha, eu... eu..."

"Cale-se!"

"Fui teimoso e estúpido como uma pedra; juro que..."

"Pedras não falam besteira, pessoas falam besteira. Pessoas escrevem besteira. É preciso ser inteligente para ser estúpido"

"Gatinha, eu... eu..."

"Cale-se! Eu não preciso de homem, tenho dedos"

"Talvez precise precisar, gatinha; talvez precise precisar"

"Este sujeito a está incomodando, senhora?"

"Presencialmente e existencialmente"

"Senhor, acho que..."

"Vá tomar no cu!"

"Venha aqui me ajudar a 'tomar no cu', desgraçado! Venha, aqui, aqui!", exclamou um dos passageiros, enfurecido, baixando as calças e a cueca e revelando o traseiro gordo pela janela.

Assustado, o amante desiludido havia saltado do ônibus com outra passageira, mas agora, seguro do lado de fora, mostrava a língua e o dedo do meio. Pôde-se ouvi-lo gritar:

"Plutão é menor que você e já foi um planeta! Um planeta contra um homem é covardia!"

Cibele e Jorge riram-se.

O motorista pisou no acelerador.

"Por que aqueles dois estavam brigando?", Jorge perguntou.

Cibele contraiu os lábios.

"Não faço ideia", sussurrou.

Os irmãos se separaram. Jorge foi jogar videogame na casa de um amigo; Cibele foi à casa de Marta, irmã de Arthur. Este a abordou na porta, perguntando:

"Tem certeza de que quer entrar na minha casa?"

A moça franziu o rosto; passou ao lado do rapaz, sem nada responder.

"Marta está?"

"Todo mundo está em algum lugar"

"Marta está aqui?"

"Talvez sim, talvez não"

Cibele resolveu esperar; sentou-se no sofá da sala e cruzou as pernas. Arthur foi até o quarto, voltou com um giz branco. Riscou o chão perto dos pés de Cibele, fazendo um grande círculo em volta do sofá.

"O que está fazendo?", ela perguntou.

"Minha casa, minhas regras", ele disse e acrescentou: "Proíbo que passe para o lado de cá!"

"O quê?"

"Isso mesmo! Defendo o direito irrestrito à propriedade! Proíbo-a de passar para o lado de cá, a não ser que me beije primeiro..."

"É louco!"

"Louco? Não. Empreendedor! Um gênio incompreendido!"

Cibele empurrou o garoto franzino sobre o sofá e subiu a escada em direção ao quarto da amiga. Com o rosto contra uma almofada, o garoto exclamou:

"Marta está com o Nando!"

Cibele o ignorou.

Encontrou o quarto vazio; pensou em recuar, mas ouviu a voz de Nando atrás de si:

"W.S.?"

O rapaz estava sem camisa e com os cabelos molhados; referia-se à tatuagem no ombro de Cibele.

"William Shakespeare", ela disse.

Nando deu-lhe um daqueles sorrisos que apenas ele sabia dar.

"Você não tatua nome de namorado porque teme que ele a traia, mas tatuou 'Humanidade' no braço. Quem lhe garante que a humanidade não a trairá?"

Marta entrou pela porta, uma toalha rosa em redor do cabelo.

"Amiga!"

"Olá, Marta! Desculpe, não sabia que estava ocupada"

"Não estou mais ocupada, estou?", ela perguntou, olhando para Nando. Ele negou com a cabeça. "Sou toda sua. Quer um café?"

Cibele assentiu.

Desceram.

Na cozinha, faziam pausa após uma breve conversa; a visitante comia bolachas quando reconheceu o desenho de uma suástica na mesa de madeira. Engasgou-se.

Marta disse:

"É coisa do Arthur"

"Um preto nazista?", tornou Cibele, e voltou-se para ele.

O irmão da amiga retrucou:

"Um preto humilde!"

Esfregando a mão contra a testa, Marta suspirou.

"É a ovelha negra da família..."

Afobado, Arthur tentou argumentar:

"Por que as pessoas culpam os nazistas se eles estavam protegendo a propriedade privada deles? Você deixaria alguém invadir sua casa? Os nazistas são "maus" porque perderam a guerra; se tivessem ganhado, seriam como os americanos que meteram bala nos ingleses. Por que as pessoas que acreditam em Deus não os defendem, como os cristãos da época defendiam? Por que os cristãos se deixaram corromper pelo marxismo cultural?"

"Globalitarismo!", sugeriu Nando, debochando.

"Venha aqui, deixe-me lhe ensinar uma coisa", comentou Cibele, segurando Arthur pela mão e guiando-o até a sala, para conversarem a sós. Voltou depois de dez minutos, perplexa, perguntando:

"O que andam ensinando ao seu irmão?"

"Amigos virtuais...", respondeu Marta.

Com os braços cruzados, Nando balançou a cabeça. Disse:

"Querida, amigos virtuais existem muito antes da internet e a maioria deles não está na sua lista de amigos do Facebook. O que quer que eu diga? O pivete tem um parafuso a menos. Não há parafusos para tantas cabeças!"

Nando fumava um cigarro e Cibele pediu para que parasse de contaminar o ambiente. Como não foi atendida da primeira vez, impacientou-se:

"Por favor, dá para parar com essa merda?"

Ele apagou o cigarro num vaso de planta. Disse:

"Se ela morrer com câncer, a culpa é sua"

Retirou uma arma que escondera na cintura e caminhou em direção à sala.

Cibele sobressaltou-se. Olhou para Marta e surpreendeu-se ao perceber que esta refletia tranquilidade.

Ia falar com ela quando ouviu Nando gritar com o rapaz:

"Então você não gosta de preto, filho da puta?"

E ouviu também uma voz assustada responder:

"Gosto, gosto, eu gosto sim!"

Depois de um minuto de silêncio Nando voltou; Arthur veio logo atrás, quieto, a cabeça baixa, trêmulo. Sentou-se no sofá, as pernas juntas.

Dona Margarida, mãe de Marta e Arthur, chegou naquele instante. Arthur correu para abraçá-la, mas não disse nada. Dona Margarina se surpreendeu com o abraço súbito do garoto. Riu-se, debochou. Largou a bolsa sobre mesa. Ele não mais sairia de perto dela até o fim do dia.

"Aconteceu alguma coisa?", perguntou a matriarca.

Cibele manteve-se neutra, Marta e Nando negaram com a cabeça.

A senhora suspirou profundamente, sentou-se à mesa e retirou uma Bíblia grande da bolsa. Estava exausta, a testa brilhosa e molhada. Marta lhe pegou um pouco de água gelada na geladeira.

"Obrigada", disse a mãe, dando o primeiro gole. "Se fosse Cristo, a Água Viva, eu não estaria com sede ainda", acrescentou antes de dar o segundo gole e tragar toda a água do copo.

A filha adiantou-se:

"O que trouxe para o almoço?"

"Cenoura, batata, macarrão..."

"Hum, eu adoro macarrão!"

"Adora? Já não lhe ensinei infinitas vezes que se adora apenas a Deus?"

"Por que diz 'infinitas vezes' se apenas Deus é infinito?"

"Oh, filha, por Deus, converta-se! O céu é..."

"Incrível"

"Sim, e..."

"Prazeroso"

"Sim, e..."

"Inefável"

"Sim, sim... Como sabe?"

"A senhora vive repetindo isso, mamãe; até parece que esteve lá e se encontrava muito drogada pelo Espírito Santo para se lembrar de como era"

"Embriagada pelo Espírito Santo"

"Embriagada, OK"

"Pense bem, filha; você vive chorando, não derramaremos uma lágrima lá"

"Nem mesmo uma lágrima pelos danados? Onde está a virtude nisso?", interveio Nando, coçando a barriga por baixo da camisa.

Dona margarida franziu o cenho e disse:

"Hum... e deveríamos? O céu é um lugar de devoção, não de virtude"

Levantou-se de súbito e pediu perdão por não ter me cumprimentado antes. Apertei-lhe a mão úmida e colei o meu rosto ao seu quando me puxou para os seus braços com uma força descomunal. Seu abraço era como o abraço de um urso.

Nando saiu sorrateiramente e foi se pendurar no balanço que ficava no quintal. Não demoraria até darem por sua falta:

"Aonde foi seu amigo gay?"

Cibele não sabia por qual razão Marta, do outro lado da mesa, olhara para ela.

"Gay? Eu já disse que ele não é gay, mãe!"

"Como não? Você não viu o cabelo dele?"

"E daí? Queria que ele fosse careca?"

"Careca, não, mas, céus, que cabelo é aquele? É o olhar dele, o que já me falaram sobre ele..."

"O que falaram... Que experiência você tem em relacionamentos? Papai é o seu primeiro marido!"

"Como assim 'primeiro marido'?"

Cibele queria ser invisível. Esforçou-se para que não ouvissem a sua respiração e por muito pouco não se escondeu atrás da cortina. Abriu os olhos e mãe e filha continuavam discutindo. Não podia despedir-se, não podia ir embora.

"Sejamos coerentes, Marta"

"Sejamos coerentes? Tenho a obrigação de ser coerente? Obrigue-me, obrigue-me!"

"Dagoberto... Dagoberto é o homem dos seus sonhos"

"Nunca sonhei com ele!"

"Se não se comportar, quebrar-lhe-ei os dentes"

"Se eu não me comportar, não terei dentes para você quebrar"

De repente ambas se calaram e a discussão acabou como uma tempestade que inexplicavelmente se converte em calmaria, desfez-se, tornou-se pó. Cibele ficou confusa quando a mãe de Marta fitou-a com o sorriso mais sereno do mundo e perguntou:

"Quer um pouco de café, querida?"

A moça agradeceu a gentileza, mas recusou dizendo-lhe que já tinha tomado.

"Preciso ir", acrescentou, procurando a porta.

Encontrou Nando no quintal, balançando. Ele saltou ao vê-la e aproximou-se rapidamente depois de atravessar uma moita. Mostrava-se um pouco sonolento.

"E então? O que veio fazer aqui?", ele perguntou.

"Visitar uma amiga"

"E o que acha da mãe e do irmão da sua amiga?"

"Ele é um estúpido, ela achei simpática. E você?"

"Ela é estranha mais é, como você disse, simpática"

"E o irmão dela?"

"Bem... Como descrevê-lo sem o ofender?"

"A mãe dela disse que você é gay"

Nando sobressaltou-se. Cibele continuou:

"Ela disse que ouviu algumas histórias sobre você..."

"Este povo linguarudo!"

A moça riu-se. Ele tratou de erguer a calca surrada que escorria da cintura e explicar tudo:

"Eu não sou gay, Madona é gay. Transo com ele porque somos amigos. Fecho os olhos e finjo que ele é uma garota. É com Karen que eu gosto de transar, mas às vezes finjo que ela é Érica, Luana, Carmen ou outra garota, mas jamais Madona. Também transo com Érica e Luana e finjo que são Karen ou que uma é outra; com Carmen só transei uma vez. Madona não precisa mais pagar para chupar alguém, mas as vezes peço dinheiro emprestado e não pago. Não quero me sentir um prostituto, mas não tenho nada contra ser caloteiro"

"Quem é Karen?"

"A razão de meu monoteísmo, até agora"

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