DESVENTURA

O dia-a-dia de Macaúba (alto, pele negra, cabelos pretos e olhos castanhos) era sempre o mesmo. Acordava às cinco. Tomava um banho de gato com uma cuia velha e, pior de tudo, furada. Espirrava duas ou três vezes devido ao intenso frio. Vestia-se com a mesma roupa, suja de sempre, carimbada com uns quatro números de um tal vereador que não se sabe quem é, uma camisa quase branca e quase toda rasgada. Beijava a esposa, os filhos, calçava sua havaiana branca com azul (talvez preta de tão encardida), saia meio cambaleando do barraco (não se sabe se era pelo sono ou se era por causa do incômodo cabrecho das chinelas fixo com um prego), descia uns protótipos de escada, algumas ribanceiras, entrava nos mesmos becos de sempre, cumprimentava os insaciáveis bêbados e drogados deitados nas ruas. Bom dia minha jóia... tropeçava nas mesmas pedras, caia nos mesmos buracos torcendo o pé. Droga! De novo não! Presta atenção, Macaúba! Espantava o vira-lata que, vez por outra, teimava em atrapalhá-lo durante sua peregrinação. Chispa! Ajeitava a camisa que quase sempre vestia ao contrário devido à pressa. Lá se vai! Bocejava quatro ou cinco vezes enquanto ouvia grito de mulher (talvez por estar sendo assaltada ou assediada...ou, no entanto, poderia estar apenas brigando com algum maluco marido bêbado que acabara de espancar-lhe após chegar ao barraco). Não importava. Tentava ler, sem sucesso algum, umas propagandas de políticos anexadas aos portes. Como é que esses caras querem que a gente entenda isso? Se a gente num sabe nem ler...! Parecem até malucos! Sorria sempre para as mulheres que retornavam exausta de seus “trabalhos” noturnos, nunca se esquecendo de vigiar seus traseiros infelizes quando passava perto deles. Parava em qualquer boteco já aberto para acender qualquer ponta de cigarro que encontrava na rua. Obrigado, minha jóia! Apressava o passo para não perder o ônibus lotado, que só passava de meia em meia hora. Quase sempre em vão. Corria gritando e acenando para que ele parasse. Quase sempre em vão. Às vezes pedia carona para algum carro. Quase sempre em vão. Mas quem lhe daria? Esperava, então, por outro. Não havia algo melhor. Ir a pé? Não dava certo, lhe tomaria muito tempo. O outro Rio de Janeiro era um pouco distante. Isso mesmo! O outro! Calma! Não é exatamente uma outra cidade! Eram dois espaços vizinhos bem distintos na mesma cidade! Entende? A riqueza e a pobreza. O granito e o papelão. As mansões e os barracos. Tudo aquilo que os professores de geografia sempre falavam nas aulas de espaço geográfico. Isso mesmo! Aquele povo esquecido e ironicamente abençoado por um tal cristo branco, redentor, de braços abertos prontos para acolhê-los. Como, se ele é tão alto? Além do mais, parece mais solitário do que eu! Se ele num fala, então não pode me ver! Se não se mexe, então não pode me escutar! Passa o dia se exibindo, enquanto um bando de gringo tira foto! Talvez só sirva pra isso! Deviam era desmontar esse cristo pra construir um monte de casa lá no morro! O pessoal ia agradecer muito! Subia para o ônibus, permanecia na escada para descer por trás sem pagar a passagem. O outro Rio de Janeiro realmente é muito lindo. Copacabana! Leblon! Isso é que é lugar pra se morar! Desceu correndo do ônibus fingindo não perceber as pessoas ao seu redor, que olhavam estáticas para ele. Talvez pensavam ser ele um ladrão. Não se importava! Estava acostumado. Caminhava para o “trabalho” quase sempre pensando em seus filhos. Bom dia patrão! Tem muito serviço hoje? Trocava a roupa rasgada por uma suja de cimento. Tudo estava ocorrendo como nos dias anteriores. Uma monotonia. Trabalhou pesado naquela manhã. Hora do almoço, rapazes! Desceu da construção para saciar a sua fome. Arroz com feijão e mortadela. Hoje você caprichou, minha jóia! Depois da refeição uma pausa para um breve descanso. Era só o tempo do patrão chegar do almoço. Permaneceu sentado, encostou-se em alguns tijolos para marcar um encontro com Morfeu. Após alguns minutos é surpreendido. Você está demitido! Pode voltar pra casa! Que casa? Destrocou de roupa. Passe aqui próxima segunda! Recebeu algum dinheiro do patrão. Obrigado! Encheu os olhos de lágrima ao pensar em seus filhos, no futuro deles, na sua esposa, na vida, nos problemas. Em tudo! Droga! Preferiu voltar a pé. Mas antes resolveu visitar seu filho mais velho na FEBEM. Vim ver o meu filho...Marcos da Silva. Como? Ele não está? Qual o nome do hospital? Seu filho acabara de ser esfaqueado em uma briga. Hoje o Senhor me pegou pra Cristo! Acabara de entrar na UTI. Seu estado era muito grave e, segundo o médico permaneceria lá por dois dias. Resolve voltar para casa com o intuito de avisar à esposa do acontecido. Já estava anoitecendo. Antes teria que pegar o seu filho mais novo no sinal da Avenida Brasil. No entanto, não estava mais lá, já teria ido embora. Onde esse menino se meteu? Alguém da rua disse que ele acabara de entrar em um carrão. Talvez tenha conseguido uma carona! Então, resolve pegar um ônibus. Fez diferente. Hoje não vou descer por trás! Vou pagar! Pra ver se dá sorte! Após dez minutos, sobe um homem estranho no ônibus e, sem demora, inicia o seu trabalho. É um assalto! Ninguém se mexe! Bora, bora, bora passando logo tudo! Macaúba acabara de perder toda a sua fortuna. Até mesmo os seus belos chinelos a quem tanto lhe servia. Desceu do ônibus. Começou a chover. Era só o que faltava! Realmente o Senhor tá descontando toda a sua ira em mim! Desculpa então se te ofendi quando falei daquela estátua gigante! Não sabia que o Senhor gostava tanto dela! Chegou na favela debaixo de chuva. Todo molhado e descalço. Começou a mesma peregrinação de subida. Até chovendo esse cachorro vem encher meu saco! Chispa! Subiu umas escadas, entrou nos mesmos becos de sempre, passou por algumas ribanceiras, cumprimentou algumas “moças” que até debaixo de chuva prosseguiam com os “trabalhos noturnos”. Boa noite! Não se lembrou de vigiar os seus tristes traseiros. Correu. A chuva estava aumentando cada vez mais. Muito mais. De repente alguns barracos começaram desmoronar. Ouviam-se gritos de todos os locais. Só faltava essa! Até um dilúvio, Senhor! Vê se vai destruir aqueles apartamentos do Leblon! A chuva também não lhe perdoou. A sua moradia havia desaparecido no meio da enchente. Seus poucos pertences foram carregados pela forte correnteza, como se ela fosse uma ladra. Procurou a esposa e os filhos. Haviam desaparecido. Muitas pessoas ficaram soterradas com a enchente. Macaúba entrou em desespero. Começou a gritar procurando por seus filhos. Estava fora de si. Revoltado com a situação. De repente encontrou o que não deveria. O caçula morto. Meu Deus! Por que? O seu desespero aumenta. Não possuía mais forças. A chuva não desiste de continuar destruindo tudo. Sentia-se fora da arca de Noé. Um pecador solitário abandonado por Deus. Tentou esconder-se da chuva. A correnteza era como uma serpente procurando por todos para dar o bote. Tentou correr com o caçula nas costas. Voltar para a outra cidade. Talvez lá não esteja chovendo! Pelo menos não tem barracos desmoronando! Correu. A chuva aumentou mais ainda (dizem que quando corremos isso acontece). O seu desespero era tão grande que não sentia o frio da noite carioca nem lembrava o caminho para a outra cidade. O caminho de sempre teria mudado com a tempestade. Pela primeira vez descia do morro por outros caminhos, por outros becos, por outros degraus, por outras ribanceiras. As mulheres da noite encerraram o expediente. Desistiram. O vira-lata deveria estar escondido da chuva em algum lugar ou talvez tenha sido também levado pelas águas assassinas. Pobre cachorro! Macaúba de repente encontrava-se perdido. No entanto, não parava de correr. Não importava. Queria fugir daquele lugar. Nunca mais retornar. O chão parecia desmoronar. Uma cratera começou a abrir-se debaixo de seus pés. Os dois foram sugados pelo abismo, caiu. Acorda! Acorda! Preguiçoso! Vai trabalhar! Isso é hora de tá dormindo? Basta a gente sair que esses vagabundos aproveitam pra ficar no mole! Assustou-se. Macaúba levantou-se em um pulo de sua cama de tijolos. Havia passado duas horas após a refeição. Caminhou de volta para o serviço. Estava feliz. De repente, o patrão aproxima-se. Ei nêgo véi arruma as trouxas e vai se embora! Tu tá demitido! Passa aqui na próxima segunda! Entrou em pânico.

David Cid
Enviado por David Cid em 08/08/2007
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