Mera Maravilha!

Em meio a arranha-céus, ruas com automóveis futuristas, vitrines de lojas luxuosas e coloridas e uma multidão a ir e vir, eu vi um homem caído na sarjeta. Não era latino, não era negro, mestiço ou nordestino, muito menos índio, pois esses há muito se foram e os poucos que restam hoje são apenas sombras de uma nação altiva e guerreira de outrora. Não! Isso tudo são meras definições, usadas na tentativa de tentar explicar, rotular e catalogar como bom ou mau a tudo e a todos.

Mas, definitivamente, era um homem; assim como eu e todos os outros. Apesar de seus andrajos, do odor nauseabundo que dele exalava e de sua imundice, certamente era um homem. Caído? Com certeza! Vivo ou morto? Não sei? O que eu sei é que nada disso importava aos que passavam. Talvez por o confundirem com lixo das calçadas. Ele fora elevado ou diminuído, também não sei, a uma nova categoria de lixo existente em nossa sociedade; o lixo humano. Nesse novo tipo de lixo não reciclável, o humano torna-se invisível. Tamanha era a indiferença dos transeuntes que tive que diminuir meus passos até parar; a uma distância razoável, é claro; pois não queria chamar a atenção. E também para poder melhor ver, o que num lampejo de lucidez, meus olhos maravilhados custavam a crer. Dentre os poucos que notavam a cena, logo vinha o diagnóstico: “Está bêbado!” “É um drogado!” “Não passa de um vagabundo”.

Pena não ser ele um empresário judeu de terno e gravata caído na sarjeta, pensei. Não que eu seja anti-semita, mas com certeza apareceriam muitos bons samaritanos, para auxiliarem. E diriam: “Pobre homem! Deve ter tido um ataque cardíaco!” Ou então: “Acudam-no, acho que foi assaltado!” Apesar de ser eu, um leigo, sei que o Estado é laico, com uma população lacaia. De predominância católico-cristã, seguida, por protestantes evangélicos, espíritas e espiritualistas de várias vertentes. Isso, entre outras inúmeras religiões e seitas existentes. Acredito que, se não todas; a sua grande maioria prega o amor ao próximo. Estupefato, novamente me admirei que, em meio à multidão, não houvesse um único dito filho de Deus que parasse para ajudar a aquele homem. Talvez o homem escolhera a sarjeta da rua errada para cair. Talvez aquela fosse a rua dos ateus e, por isso, todos os religiosos e tementes a Deus dobrassem a esquina e seguissem pela rua paralela.

Minha curiosidade e admiração aumentavam e, sem me dar conta, ia me aproximando cada vez mais, até que pude ver algo que em nada me admirou: policiais passaram pela calçada olhando tudo e a todos, menos para o homem caído e no semáforo logo à frente uma ambulância esperava pelo sinal verde.

Mas o que poderiam fazer esses homens? São meros representantes do Estado. Outra simples definição. E eles representam a Autoridade do regime. E aí estão para a sua manutenção. A proteção à propriedade privada e às Corporações vem antes da proteção dos mínimos direitos dos indivíduos. O que importa o estado dos párias, não sendo esses; páreos para o Estado?

Nos dias de hoje, a peneira que tapa o sol já não é mais eficaz como antes e mostra-se totalmente antiquada. Talvez por isso, hoje em dia, os óculos de sol estejam tão na moda. Porque no fundo acho que são coloridos. Para que possamos enxergar somente o que quisermos e nas cores e tonalidade que desejarmos.

E assim, divagando em meus pensamentos e sem me dar conta, quando vi já estava diante daquele homem, e ele aos meus pés.

Mas, então, de maravilhado passei a boquiaberto. E a admiração deu lugar ao horror. Aquele homem caído na sarjeta tinha um dos braços em torno de um espelho. E nele pude ver minha face nitidamente refletida. Uma voz até então desconhecida por mim, gritou em minha mente. Estava mais para uma voz-pensamento, que eu não reconhecia como sendo meu propriamente dito. E dizia: “Este homem poderia ser você!” Seria minha consciência?

Horrorizado comecei a retroceder e, apressado, voltei por onde vim. E na esquina parei na primeira barraca de camelô e comprei uns óculos de sol da última moda, para poder ver o mundo colorido e ao meu modo. E também para calar a minha consciência e poder seguir tranquilamente pela rua paralela.

Marcelo Harimani
Enviado por Marcelo Harimani em 20/04/2017
Reeditado em 16/09/2021
Código do texto: T5976657
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