As Cinzas dos Dias

  O medo aceso em seus olhos, como o brilho do sol entre a neblina daquela manhã, manhã que anunciava um belo dia, era o que iluminava sua magnificência de menina, em mágica e peculiar transformação.

         - Pensando bem, o medo talvez tenha sido o que de fato nos prendera durante todo este tempo. – recordava-me do que ela dissera nos últimos dias antes de sua morte. – Você por achar cruel demais a vida e eu por considerá-la demais para mim. Tinha tanta sede de viver que às vezes isso me assustava. – ela sempre se interrompia para acender um cigarro, atirá-lo pela janela, dar uma tragada ou expectorar uma gosma que já trazia entranhada há muito em si. - Tanta sede de viver, e olha no que se deu minha vida.

         Se, porventura ou desventura, ela me tivesse moldado à sua maneira de ser ou ver a vida, bem diversas teriam sido estas palavras, se alguma agora eu tivesse para escrever. Naquele dia, a chuva ter começado tão de repente, contrariando minha previsão de um dia bonito, e termos que ficar ali juntos esperando tudo passar, estranhos, e tantos dias de chuva depois, acomodados um ao outro, percebemos que foi muito mais que uma simples tempestade que passou por nós.

        - Confesso que nunca ficara tão feliz em ver uma pessoa em minha vida, me encontrava sozinha, perdida. Naquele dia eu... – muitas vezes ficava confusa e intrigada, lembrava-se talvez que acabara de atirar mais um cigarro pela janela e que nele fosse também um pouco do que restava de sua tola existência – Eu compreendo, enfim, que não teria como ficar presa a você, de uma maneira ou de outra. – Continuava, quando não interrompida por uma tosse violenta; expectorava e resolvia acender outro cigarro.

         Eu compreendia que duas coisas contrariaram a previsão de as coisas darem certo; primeiro, um capricho da natureza ter caído a chuva daquela maneira, a outra, um capricho meu ter nos encontrado então.

         Muitas vezes, eu ainda tentava argumentar sobre aquele vício terrível, que ela não conseguia parar.

      - Para falar a verdade – ela argumentava afinal - eu não gostaria de parar, mesmo se tivesse como, já que é a única coisa, na verdade, que tenho contra esta malfadada vida. A cada cigarro que acendo, me vejo ali, brasa viva, vida, mesmo que fora de mim, mesmo que se apagando.

       - Mas, não se preocupe - ela continuava, ao perceber-me contrariado - não existe nada mais substituível que uma pessoa. Desde criança, sempre tive a impressão de que passaria ou deveria passar pela vida sem deixar marcas que significasse alguma coisa nas pessoas. Mas, depois veio o risco de viver, o desejo, com isso a dúvida e a angústia me acompanharam por algum tempo. Sabia que, no fundo, algo tinha de acontecer. Que bom ter te encontrado, ao menos; naquele dia percebi que o primeiro sentimento era verdadeiro, de passar pela vida, sem fazer diferença alguma. – acontecia de ela passar longo tempo perdida, observando a fumaça que se desvanecia no ambiente sufocante de nosso quarto e o próprio cigarro que já ia se extinguindo entre seus dedos, e declarava em pedaços que agora recomponho:

        - Penso às vezes que a minha doença não foi o cigarro que, de algum modo, me aliviava e ia me libertando de tudo; nem sequer foi aquele maldito escritório, que me fez perder o resto de consciência que eu tinha ainda de mim mesma; nem sequer fui eu mesma, a minha doença; talvez, de certa maneira. Mas, vendo de outro ângulo, do ângulo correto - sem o embasamento que causou nas lentes de meus óculos, os respingos daquela chuva – é que a minha doença foi você. Você foi o começo e o fim de minha tola existência. Entreguei a minha vida inteiramente a você, já que nunca tivera imaginação, quiçá, suficiente para desejar algo melhor para mim. Desde aquele dia, você passou a ser o melhor que eu poderia conceber para mim; o melhor que poderia me acontecer, pelo menos foi o que se afigurou naquela manhã em que te conheci. – e encerrava atirando mais um cigarro pela janela – No mais, você foi o melhor que me poderia acontecer, já que ao seu lado jamais temi o fim das coisas, o meu fim na noite... – e concluía ainda com uma tosse sem fim. Expectorava e atirava gosma e cinzas no recipiente que mantinha ao lado. Era, por conseguinte, a poesia que ainda restava daquele dia.

(O presente texto faz parte do volume de contos: "O Mecanismo das Horas")

Aleksandro F de Paula
Enviado por Aleksandro F de Paula em 21/04/2017
Código do texto: T5976950
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