História?

Façamos as malas rumo ao encontro da cultura. As fotos exibidas em inúmeros portais de turismo são deveras atraentes. Quase dão um contorno tridimensional à História. Mas são fotos, na sua grande maioria captadas no dia certo, na hora certa e com recursos e tratamento que pobres mortais dificilmente conseguirão igualar.

Mas é necessário fincar a bandeira do EU ESTIVE AQUI. Acredito que seja isso que faça movimentar uma potente indústria, a do turismo cultural. Há que se alimentar e entreter o coletivo ávido por lembranças, tickets com desconto e camas, cada vez mais confortáveis. Sem esquecer a importância do selfie postado. Mas e a cultura?

Era uma visita guiada pelo Palácio da Bolsa na cidade do Porto, num final de tarde primaveril. E lá adentrou mais um amontoado de turistas armados de máquinas fotográficas para registrar uma ostentação imensa. Sorriso um pouco tímido e grandes óculos a guia deu início ao seu último trabalho do dia.

A história começa num incêndio no Convento de São Francisco, do qual restou somente a atual igreja. A rainha à época doa as ruinas do antigo convento à Associação Comercial do Porto e ainda coloca à disposição uma receita extraordinária, por um período de dez anos, sobre os produtos que circulassem na Alfândega do Porto. Dez anos de imposto para emoldurar um palácio que demorou quase 70 para ser construído. Quantas riquezas, esforços, vidas em nome da monumentalidade. Não consigo perceber o sentido. Talvez seja pelo incessante, e irritante, som das câmeras e celulares imitando o abrir e fechar do obturador mecânico. Ou porque não me sinto um turista. Ou a guia não consegue alcançar a História.

Cultura, história, sentido, entendimento. Para alinhavar corretamente estes pontos há que ter a visão do poder! E ele não permite biografias. Só fotos! E a face perfumada, quanto viciada, da história. Ou seria estória?

Exibida numa das salas contemplamos uma mesa com o tampo trabalhado em marchetaria. Três anos de dedicação e a utilização de restos de madeira do próprio palácio. E com friso marcante da guia: o artista utilizou somente um canivete afiado. Gostaria do depoimento desse artista. Fiquei imaginando sua presença, em forma holográfica, contando particular experiência e visão. Expandi a viagem imaginativa e plantei em cada sala um quase anônimo participante ocular daquela história. Como seria interessante travar um diálogo com eles, mesmo cada um de nós enclausurados em seu tempo.

Lembrei que esta questão já tinha andado pela minha mente e liguei para Bill Gates. Queria saber o andamento do projeto de inteligência artificial que culminava com a criação de um aplicativo onde poderíamos reunir vários desses personagens para discussões. O entendimento da História seria outro, limitado, claro, à nossa ótica. E achar o sentido de continuarmos colocando o crachá de turistas culturais e disparando alucinadamente obturadores.

Mas ele, com aquela voz grave de salvador do planeta, recomendou-me perder menos tempo com fotos turísticas e procurar encontrar um espaço para chamar de meu. O mais longe dessas fotos. Onde minha história terá sons, gostos e conteúdo próprio. Aí sim monumental.

Desliguei e não me incomodei com a sensação que ele é apenas mais um a acreditar que a História é descartável. Ao contrário dos livros que a apresentam, fotos e batatas fritas, fiéis acompanhantes de inúmeros pratos típicos.

Esqueci do Palácio, sua história e paredes frias. Desci as escadarias e fui ao encontro de um bom vinho. Do Porto? Se é para ser ludibriado que se faça presente uma boa dose de teor alcoólico. Tim, tim!

Fernando Antunes
Enviado por Fernando Antunes em 28/04/2017
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