A Deus as armas

- Quem é aquele ali na parede nos olhando?

- Alan Moore.

- E aquele ali?

- Bertrand Russell.

- É o Raul Seixas, não?

- Sim, é ele.

- Nenhuma mulher?

- Você é uma mulher, uma bela mulher.

- Não estou pendurada na parede.

- Não gosta da cama?

- Gosto.

- A parede fora feita para criaturas barbudas.

- Bertrand Russell não era barbudo.

- Era o seu único defeito.

- O meu também?

- Você é barbuda entre as pernas.

- O que está esperando para fotografá-la? - perguntou, afastando os joelhos.

Dormiram e acordaram uma hora e meia depois.

- Bom dia, princesa. Dormiu bem? É hora de acordar.

- O que pretende chamando uma anarquista de princesa? Levar um tiro?

- Tenho direito a um último pedido?

- Sim.

Beijaram-se.

- Conservadorismo é, pode-se dizer, a arte de impor dissimulada e covardemente uma teologia fundamentalista - principiou Adriano. - A estupidez deve ser apresentada de forma estratégica a fim de não parecer o que é, estupidez. O mundo ideal para o conservador é desagradável, frio, inóspito, a fim de que as pessoas coloquem o sentido de suas vidas num futuro utópico, inatingível - concluiu.

- Você poderia ser presidente - disse Cíntia.

- Jamais seria eleito - disse Adriano. - Sou um homem solteiro.

- Seria eleito num mundo com pessoas solteiras - ela sugeriu.

- Exato.

- O homem se sentia só, Deus criou a mulher e ele passou a se sentir mais só - disse Cíntia. - O Criador deveria ter apenas ensinado a Adão o conceito de 'mulher'. Se eu fosse um conceito, não sofreria. Nem precisaria lhe explicar tal coisa. Penso, logo existo.

- Você é a perfeição da imperfeição - disse Adriano.

- Acho que as pessoas não compreendem os meus poemas - ela disse. - Quando eu conseguir compreendê-los, tentarei provar a elas o quão enganadas estão.

- Não teremos tempo para isso - disse Adriano.

- Não mesmo - ela concordou.

- Como ele a tratou?

- Bem.

- Por mais machista e arrogante que um homem possa ser, ele jamais abrirá mão de poder olhar uma mulher de baixo para cima, principalmente se ela tiver belas pernas.

Adriano acariciava suavemente as coxas e os joelhos de Cíntia.

- E Brenda? - ela perguntou. - Quantas vezes fizeram amor?

- Nenhuma.

- Fizeram sim.

- Não.

- Treparam - ela insistiu. - Por isso se trancaram no quarto, ontem. Para que outra razão fariam isso? Para se sentirem livres, sós. Como foi? Não precisa esconder, não sou sua dona.

- Meu avô entrou numa guerra sem saber a razão da guerra. Por que eu precisaria de uma razão para ficar trancado no meu quarto? Ora, simplesmente havia me trancado com ela - ele respondeu. - Não acredita em mim?

- Não.

- Tenho o hábito de mentir?

- Também não; mas é proposital - disse Cíntia. - Evita mentir exatamente para parecer convincente quando precisar mentir. Se precisasse matar um homem, com certeza seria o seu melhor amigo por dois ou três anos antes de tentar lhe tirar a vida. Salvaria a vida dele antes de apunhalá-lo.

Ficaram abraçados diante do espelho, Adriano acariciando-lhe ternamente o seio acolhido na palma da mão.

- Formamos um lindo casal, não acha?

- Não somos um casal - ela disse. - Não ainda. Creio que nunca seremos.

- Seremos, segundo os jornais - ele disse, beijando-a na testa. - Um casal de namorados é um casal. Um casal de amigos é um casal. Um casal de irmãos idem. É-se um casal antes mesmo de se casar oficial ou religiosamente.

O quarto estava desarrumado. Roupas estavam espalhadas, misturadas. Pantufas de ursinho próximas a dois pratos e dois copos sujos. A luz da lâmpada iluminava pouco, quase nada. Na TV, sem som, as imagens das torres em chamas no 11 de setembro - o 11 de setembro americano, não o chileno. Quantos anos se passaram desde então?

- Por que dizem "Deus salve a América"? - perguntou Cíntia. - Deus quer destruir a América, é antiamericano. Quer destruir este mundo e implantar o mundo vindouro. Amar a "América" é amar o mundo - disse ainda e perguntou: - Conseguiu a arma?

- Sim - ele disse.

- Deixe-me vê-la - ela pediu.

Adriano afastou-se e foi buscá-la na primeira gaveta ao lado da cama. Entregou-a e Cíntia, quieta e contemplativa, olhava a si mesma e a arma diante do espelho.

- Se cometer suicídio é pecado, por que Deus ajudou Sansão a se suicidar? - ela perguntou. - Jesus também se suicidou, não?

- Não foi suicídio no caso de Jesus - Adriano disse. - O Pai pediu, ordenou. Disse que era a única forma de salvar a humanidade. Ou ao menos uma pequena parte dela.

- Deus Pai teria desafiado o Filho no jogo 'Baleia Azul'? - ela perguntou.

- Não sei - ele disse. - Mas Deus mandou Abraão fazer com Isaque aquilo que Suzane von Richthofen fez com os pais.

- Deus não mandou a garota matar os pais - disse Cíntia.

- Como sabe? - ele perguntou.

- Deus respeita a Constituição - ela comentou. - Ignore o que eu disse. A maneira mais eficaz de se demonstrar que se a ama a Deus é desrespeitando a Constituição. Abraão, o pai da fé, foi o primeiro terrorista; Sansão, o primeiro homem bomba.

- Deparando-se com Maria Madalena, Jesus preferiu o apedrejamento moral ao físico - disse Adriano.

- Momentaneamente - disse ela, sentindo o cano frio da arma contra o ventre. - Ameaçou apedrejá-la fisicamente também, no Juízo Final, com pesadas pedras em chamas, que cairiam do céu como gotas de chuva. Não deixo de admirá-lo por isso, mas poderia ter um de seus discípulos como mestre. Um que não faça parte dos 13. Dom Hélder Pessoa Câmara ou Karl Rahner.

Depositou a arma sobre a penteadeira.

- Sabe o que Brenda me disse? - Adriano perguntou.

- O quê?

- Que somos dois cães vadios.

- Mas somos de fato dois cães vadios - ela disse.

- Foi o que disse a ela.

- Antes ou depois de treparem?

- Não trepamos - ele disse, coçando a barriga. - Por isso me chamou de vadio. Disse que pessoas de bem trepam com pessoas de bem e não ter trepado com ela era um indício de que sou um cão vadio.

- Não quis?

- Não - ele disse. - Não naquele momento. Ela, por sua vez, embora estivesse disposta a consumar o ato, confessou desprezar o sexo sem compromisso.

- Sexo antes do casamento não é sexo sem compromisso, assim como beijo antes do casamento não é beijo sem compromisso - Cibele disse. - Sexo sem compromisso é estupro; sexo antes do casamento é simplesmente sexo antes do casamento. Como duas pessoas poderiam fazer voto de casamento se tudo o que é anterior ao casamento é descompromissado? Como dar crédito a um "voto sem compromisso"? E por que este 'antes' e não o 'sem' se casar-se é uma escolha, não uma obrigação? Não sou lésbica, posso muito bem escolher não me casar com Ivone, minha melhor amiga, e isso não quer dizer que nossa amizade é sem compromisso; também não preciso casar com a minha chefe nem com a empresa para ser uma funcionária "com compromisso".

TRIMM

- O telefone - disse ele. - Quer atender?

- Pode atender - ela disse.

- É o Edemar. Toma.

- Oi - ela disse. - Sim, estou bem. Estou na casa do Adriano. Sim, verdade, é a minha casa. É que as vezes eu me confundo. Penso que sou outras pessoas e que elas são a mim. É difícil separar. Nunca teve essa impressão antes? Não? Tenho me confundido muito nos últimos meses. Pensado que sou ele. Precisa desligar? OK, a gente se fala depois, até. Adeus.

TRIMM

- Oi de novo - repetiu ela. - Tem uma notícia boa e uma ruim? Qual é a boa? A notícia boa é que a notícia ruim poderia ser pior? E qual é notícia ruim, pequena Pollyanna? Não, é a personagem de um livro. Mais de um livro. Não me ama mais? Isso é mesmo triste, mas por que não me ama mais? Poderia me dizer? - questionou ela e, cobrindo parte do aparelho, sussurrou para Adriano: - ele disse que não me ama mais.

Adriano apanhou o telefone.

- Não, amigo, ela não o está traindo - ele disse. - Você a está traindo, porque não quer o melhor para ela. Usou a minha cama para traí-lo? Não, não. Como dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço, dois amantes não podem ocupar a mesma cama, não ao mesmo tempo. Portanto, a traição é algo irrealizável, fisicamente impossível! Você pode ser o homem da vida de uma mulher, mas jamais será o homem das setes vidas de uma gata.

Cíntia recolocou a calcinha e enfiou as pernas nas calças.

- Sinto em discordar de você - disse Adriano, que ainda estava ao telefone. - Um garoto não troca um amigo imaginário por um amigo real, troca o amigo imaginário por uma namorada imaginária. Será a primeira mulher que ele trocará por outra. 50 por cento das tragédias se dão por culpa da mulher e os outros 50 por cento se dão por culpa dos homens que as mulheres trouxeram ao mundo? Discordo também. Tudo bem, tudo bem, eu concordo, eu concordo, mas tem de convir que esse tipo de afirmação induz ao erro.

- Simone Weil - sussurrou Cíntia. - Poderia colocar uma foto de Simone Weil na parede.

Adriano assentiu; despediu-se brevemente de Edemar.

- Adeus, amigo - disse a ele, batendo o telefone. Ergueu os ombros, olhando para Cíntia. Estava bela e arrumada. - Vamos? - perguntou.

Ela assentiu; ele arrumou-se num instante, estendeu o braço e apanhou a arma, que fora deixada sobre a penteadeira.

- Quem fica com ela? - tornou a perguntar.

- Eu sou canhota - ela disse. - Você é o destro aqui.

- Não sou destro, sou superdestro - ele respondeu, levantando a camisa e guardando a arma na altura da cintura. - Arrisco-me a dizer que o meu braço esquerdo possui uma função simplesmente estética.

Morreram ainda nos primeiros dias de guerra-civil.

_