VAMOS BRINCAR?

Chegaram. O som característico do carro entrando na garagem entrou nos meus tímpanos como o de uma bomba. Corri para fechar a porta do quarto. Mais do que tudo precisava evitar o olhar de desprezo da esposa e da filha adolescente. Pela milésima vez comecei a refazer as contas para alugar um quarto em algum lugar, só para continuar com a certeza de que ainda teria que viver ali por mais alguns meses. Só agora voltara a trabalhar, depois de 6 meses afastado por depressão e os malditos empréstimos consignados comiam quase todo meu salário. A voz da minha mãe ecoou outra vez na cabeça:

-Casamento é na saúde e na doença. Quando você virava plantão de sábado, domingo e final de semana, era amorzinho para cá, amorzinho para lá. E ela torrando tudo alegremente e tolerando tudo o que você fazia. Agora te trata igual a um cachorro. Se você sair da casa eu te mato. Afinal de contas vocês construíram ela juntos!

Como explicar que a falta de dinheiro foi apenas a gota d'água de vários erros meus? Ou será que ela estava com a razão e era sua condição que fazia com que se visse como culpado de tudo? Chacoalhei a cabeça com força. Me recusei a pensar no assunto. Aumentei o som da TV.

A primeira voz que escutei foi do caçula. Psiou! Psam! Ativando poder ninja atômico! Catapsiu! Cada onomatopeia que ele desferia me atingia como uma adaga no coração. Mas conhecia o enredo desse samba. Assim que saísse para brincar com meu filho ela arranjaria alguma coisa para reclamar ou diria alguma coisa que me magoaria. O problema de quando ele chegava animado assim era que acabaria dormindo cedo e então não conseguiria ficar um tempo a sós com o menino. Mas eu não podia reclamar, na maioria dos dias ele vinha dormindo e então conseguia ficar um pouco com ele mais tarde. Vida escrota do caralho! O que uma situação dessa deve fazer com a cabeça de uma criança de 7 anos? Lágrimas me escapavam a contra gosto. Pus a TV em um canal de música e comecei a ler um relatório do trabalho que precisava me inteirar. Os sons de sonhos infantis sumiram assim que o pivete ligou o televisor da sala. Deus que me perdoe, mas era melhor assim.

Elas entraram com o alarido costumeiro. Durante algum tempo acreditei que falavam tão alto para provocar-me. Mas há algum tempo não me importava mais. Percebi vagamente que discutiam alguma coisa sobre as amigas da filha. De repente essa caiu no choro, reclamando de como não sei quem havia sido falsa com ela e a estava colocando em problemas. A mãe não dava muita atenção e dizia para ela ignorar. Para não ligar para esse "tipo de gente".

Tipo de gente! Tipo de gente. Como aquelas palavras me machucavam. Nunca as ouvi em meu lar enquanto crescia. Diferente da dela minha família era uma completa bagunça. Como diziam os psicólogos, "disfuncional". O pai adotado e malandro, gigolô de um velho decadente de ascendência quatrocentona e uma mãe ausente que se matava de trabalhar para se afirmar dentro da casa. Mas se havia algo que me ensinaram, todos eles, é que não existia "esse tipo de gente"! A mente foi longe lembrando de como meu avô lutou para que a praça do bairro tivesse o nome de um morador de rua querido da comunidade. De como o via tratar desde a pessoa mais simples à mais importante da mesma forma. Abri um pequeno sorriso ao lembrar do gesto que ele fazia diante de inúmeras situações. Colocava a mão em frente ao rosto e assoprava: "Pó, somos apenas pó". Meu pai, aos domingos quando íamos na feira, sempre pedia na padaria dois salgados e dois pingados. Cumprimentava a todos como se fosse um político, sabia da vida de cada um. Mas seu lanche ia comer no degrau de entrada com um mendigo. Ele não dava um alimento, repartia o seu e comia junto com ele, não se importando com mais ninguém. Sua mãe a mesma coisa, tratava todas as empregadas como amigas e aí dele se desrespeitasse alguma delas. Já fora chamado de muitas coisas, nunca de esnobe.

Mas a verdade é que se eu respeitava a opinião dos outros, não fazia o mesmo com meus filhos. Queria tanto que eles me imitassem o gosto por boa literatura e música que não dava a devida atenção ao que eles apreciavam. E quanto ao temperamento desejava tanto que fossem diferentes de mim que chegava a ser rude. Afinal de contas foi por isso que casei com ela, porque tinha certeza que meus rebentos teriam uma criação diferente da minha. Antes de conhece-la e à sua família repetia com orgulho as palavras de Brás Cubas: "Não terei filhos. Não deixarei para ninguém o legado da minha miséria." Mal sabia eu que ela também queria fugir do peso de viver junto a sua parentela. E dar as suas crianças outra vida, diferente da dela. Mas era de se desconfiar, se ela gostasse tanto dos seus familiares como apregoava teria escolhido alguém parecido com eles. Todas as decisões deixava que ela tomasse, só para ter paz. Antes de ficar doente as brigas eram sempre em relação a educação deles.

Um exemplo claro era o mais novo. Tentei colocar regras rígidas de comportamento, estimular ele a ser sempre educado e menos moleirão. E em tudo ela me boicotou. Pelo menos na parte da educação parecia que estava funcionando. Mas ele já estava sendo chamado de "mãezinha" na escola e apanhando dos colegas. Ser zoado era algo que eu conhecia bem, me acompanhou por quase toda a vida escolar. Mas justamente por não ter preconceitos e, via de regra, já conhecer as matérias que eram passadas e me dispor a ajudar todo mundo, foi algo suportável. Me lembrei da única vez que briguei na escola. O moleque mais maloqueiro da sala começou a me provocar. Aceitei a provocação e fomos brigar no final das aulas, com toda os alunos como expectadores. Não fugi e apanhei que nem cachorro. Fui encontrar meus pais em um restaurante da cidade todo machucado. Antes da minha mãe falar qualquer coisa meu pai já perguntou o que tinha acontecido:

-Briguei na saída da escola pai.

-Bateu ou apanhou?

-Apanhei.

-Fugiu?

-Não, aguentei até um adulto que estava passando nos separar.

-Está certo. Vai no banheiro se lavar e volta aqui para a gente comer.

Já a noite ele me puxou de canto e disse:

-Estou orgulhoso de você. A pior coisa a se temer é o próprio medo. Como você enfrentou a situação agora vão te respeitar, mesmo tendo apanhado. Até quem te bateu vai te deixar em paz. Anota o que estou te dizendo.

E ele estava com a razão. Nunca mais ninguém "puxou assunto" comigo e acabei me tornando amigo do menino que me bateu.

-Chega! Gritei para ninguém e para o mundo todo. Acho que foi para Deus. Sai do quarto.

-Meninão, vêm cá. Quero te ensinar uma brincadeira nova.

O moleque caminhou até mim assustado, talvez com a minha figura que nos últimos meses deveria ser para ele como uma presença, um bicho que se tem no quintal.

-Primeiro você faz o seguinte. Bate na minha mão com toda a sua força. Isso! Agora de novo. Só que com a mão reta, sem dobrar o punho se não você pode se machucar. Tenta de novo. Isso! Outra vez, só que agora mais forte. Assim grandão! Agora com a outra mão...

-Que é isso agora?! Saiu da caverna só para ensinar o menino a brigar? A arrogância na voz da minha mulher me doía até a alma. Suspirei fundo.

-Não. Estou ensinando ele a não apanhar sem revidar. Ou você quer que até as meninas façam dele gato e sapato? Suportei o olhar por alguns instantes. Ela chegou a abrir a boca para falar algo, mas depois deu as costas.

-Vem filho. Vamos brincar de brigar.

-Prá quê pai?

-Para parar de apanhar e não ter que brigar de verdade. Agora dá outro soco na minha mão bem forte.

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 06/07/2017
Código do texto: T6047238
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