"Razão de Viver" = Conto escrito em 1982 e reencontrado agora=

    Seu Porfírio sobe a rua no seu passinho apressado de sempre. Faltam só três minutos para as seis da tarde e seu horário de chegar em casa é às seis em ponto. Há trinta e cinco anos que ela chega em casa às seis em ponto. Nem um minuto antes nem um minuto depois. Às seis em ponto de segunda a sexta-feira.
   O enorme bigode branco esconde o sorriso que só transparece nos olhinhos vivos, rodeados de rugas. Sorri feliz na antecipação da raiva que fará à esposa. Há quanto tempo será que se tornaram inimigos? Não se lembra mais, mas sabe que foi muitíssimo tempo depois de terem se casado. Apalpa o bolso direito do paletó e constata que o rato branco continua bem vivo ali dentro.
    Na sexta badalada do carrilhão da sala de sua casa, bate à porta. Não sabe porque, mas jamais carregou consigo a chave de sua própria casa. Da única residência de toda a vida do casal.
- Boa tarde, querida.
- Boa tarde, Fifinho.
- Quantas vezes eu já lhe disse que não suporto esse apelido imbecil que você me arranjou?
- Deixe-me ver...até hoje acho que umas cinco mil e quinhentas vezes mais ou menos.
- Deixa pra lá...O que temos para comer?
- Comida.
- Diaba dos infernos! Isso eu sei. Que tipo de comida?
- Brasileira.
- Esquece. Me chama quando estiver pronto.
- Pronto o quê?
- O jantar, gorda nojenta. O jantar, porca miséria! A comida, praga de mãe!!
- Êta velhinho bravo...Que medo que eu tenho dele...

   É um ritual antigo. Porfírio chega, ela o irrita, e os dois brigam.     
  Quando ele entra no quarto, furioso, batendo a porta, Ordália sacode o corpanzil no riso satisfeito.
  Em geral é ela quem ganha as paradas. Porfírio é nervoso, agitado, não tem fleuma suficiente para replicar com calma. Mas de vez em quando ele acerta e quem fica furiosa é ela. Possessa mesmo. Desde que a filha mais nova se casara tem sido assim: um ambiente de inimizade constante e declarada. Às vezes chegam às vias de fato.

   Após o jantar ocupam seus lugares no sofá da sala. Cada um num canto, com mais de metro a separá-los. Ordália nota que o marido a olha com insistência e que seus olhinhos espertos brilham mais que o usual. “Deve estar me aprontando alguma...O importante é que eu mantenha o sangue-frio”.
  Porfírio tem vontade de soltar uma gargalhada ao pensar no escândalo que a mulher fará ao ver o rato branco. Se ela desmaiar de susto, melhor ainda. A vitória será mais acachapante e completa. Mas terá que ser na hora certa, quando ela estiver distraída da vida, com a atenção concentrada no tricô.

- Dalinha, minha querida, olha o que eu trouxe pra você- enfiando a mão no bolso iça de lá o apavorado ratinho branco, que vem esperneando.
Ela olha para o rato com indiferença, depois sorri. Torna a olhá-lo e pergunta:
- É seu parente, Fifinho? Os cabelinhos brancos são bem parecidos, são da mesma tonalidade. E a carinha é idêntica...
   Porfírio levanta-se furioso, joga o rato pela janela e quase arrebenta a porta ao entrar no quarto:
- Inferno! Desgraça!! Porca miséria! Essa gorda nojenta não se assusta mais com coisa alguma.
   Enquanto isso dona Ordália vomita até as tripas no banheiro.         
  Sentira pavor do ratinho, mas o importante naquela hora era manter o sangue frio, custasse o que custasse.
  Lembra-se de uma vez em que ele trouxera no bolso uma cobra de tamanho razoável e a exibiu com uma satânica expressão de triunfo, crente que ela morreria de medo. Que decepção, coitado, ante seu comentário: “Bonita, Fifinho, mas completamente inofensiva.”
- Como é que você sabe, diaba?
- Vê lá se um velho cagão, um maricas como você traria uma cobra perigosa no bolso...
- Maricas e cagão é a puta que te pariu, gorda nojenta!

   Ordália tinha mais sutileza, sabia irritá-lo mais e muitas vezes mais. Constantemente. Tirava botões de seus paletós e levava meses para repregá-los, passava mal, de propósito, as camisas com as quais ele sempre fora tão caprichoso, acordava-o durante a madrugada dizendo ter ouvido barulho na cozinha e o bobo acreditava. Andava pela casa toda e ao voltar encontrava seu lado da cama molhado ou encontrava a porta do quarto trancada. E lá dentro Ordália ria de chorar. Às vezes desligava a chave geral de eletricidade em meio ao banho quente do marido ou dava nós apertados em seus cadarços. Em geral ria demais enquanto o velho dava pulos de raiva e desfiava seus inúmeros palavrões e pragas.

- Porfírio, o que é que você acha de uma feijoada caprichada neste sábado?
- Eu adoraria, Dalinha. Eu adoraria.
- Ótimo. Então vou fazer só uma macarronada.

    Às vezes ele telefonava da rua tentando uma voz irreconhecível, em geral quando sabia que ela devia estar no banho:
- Alô, é do açougue Central?
- Não senhor. Aqui é da casa de um velho maluco e impotente, um tal de Fifinho, um velhinho ridículo. O senhor o conhece? É um que tem um bigodão de palhaço velho e...
Ela ria muito quando ele batia o fone com ódio: Velho bobo...não aprende mesmo.

   A trégua era aos domingos, quando iam à missa de braços dados. Comungavam juntos e voltavam pra casa contando casos e coisas um para o outro na maior camaradagem. A trégua não durava o domingo todo. Durava mais ou menos até a hora do almoço. A menos que os filhos e netos aparecessem e passassem ali o dia todo. Eram então o casal perfeito, o casal que dava à descendência o bom exemplo da exemplar convivência conjugal. Eram, então, um casal sem atritos, sem diferenças, em harmonia total e duradoura.

   Um dia a briga foi mais séria e ele soltou a ofensa suprema:
- Meu sonho é vê-la morta, sua...sua...sua vaca maldita.
Mal proferira a ofensa, Porfírio ficou branco de susto e medo. Com agilidade surpreendente para sua gordura, como uma ágil dançarina, Ordália pulou de sua poltrona, soltou as agulhas e de joelhos aos lados das pernas dele cobriu-lhe a cara de taponas secas, rápidas e doloridas:
- Desculpe-me, querida, saiu sem querer, meu anjo..
- Vaca na família, seu ordinário, só teve uma e foi aquela que se casou com o cara que acha que é seu pai. Não se esqueça nunca mais disso, senão ainda perco a cabeça e parto para a violência de verdade. Ainda perco a esportiva, ouviu?
- Ouvi, querida. Perdoe-me, sim, meu anjo?

   Em outra ocasião, em outra desavença, ela estava de costas para ele. Porfírio não resistiu: desferiu-lhe uma violenta bengalada nas costas enormes, estofadas de gordura. À aparente falta de reação imediata, ajeitou o paletó e saiu desfilando calmamente pelo corredor, sentindo-se o próprio machão dominador. O vaso de porcelana atingiu-o no alto do crânio no exato momento em que ele punha a mão na maçaneta. Coisa de pouca monta. Apenas duas semanas de curativos e ele estava pronto para outra boa vasada.

  O telefone toca e ele atende. Conversa um pouco e grita para cima:
- Não é pra mim.
   Ela desce apressada, preocupada com a filha prestes a dar a luz, molhada e semi-vestida, tropeça na escada e atende ansiosa quando ele completa:
- Era engano.

   Recordavam de vez em quando dos primeiros anos de casados. Ele magro, simpático, muito elegante, sempre correto e atencioso para com todo mundo. Ela gordinha, bonitinha, sempre com largo, lindo e sincero sorriso, e ambos cheios de tédio, compreensão, rotina e responsabilidades. Os filhos nasceram, cresceram muito depressa, casaram-se e sumiram pelo mundo. Depois do casamento surgiram as desavenças. Desavenças que deram ao casal uma nova razão de viver: atormentar cada vez mais um ao outro.

- Fifinho,o que é que você quer que eu escreva como seu epitáfio?
- Pode colocar: “Até que enfim, em paz”. E você?
- Mande escrever: “Que na próxima encarnação eu encontre um homem de verdade”. Bonito, não é?
- Lindo. Mas será que reencarnação não é privilégio de seres humanos?

   Seu Porfírio faleceu aos setenta e cinco anos de idade. De parada cardíaca. Dona Ordália morreu menos de um ano depois. De saudades.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 13/08/2007
Reeditado em 13/08/2007
Código do texto: T605654
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