Anjinho
Anjinho chegou.
Uma pequena aglomeração o aguardava defronte a casa de tijolos ainda inacabada.
Homens e mulheres não escondiam a tristeza e a compaixão. Algumas pessoas se mostravam conformadas, como se aquilo fosse algo natural e esperado.
Os amiguinhos se abeiraram. Olhos arregalados de quem não acreditava no que estava acontecendo.
Começava a noite.
O pai chegou bêbado, entretanto preferiu o silêncio ao costumeiro escarcéu que protagonizava durante as bebedeiras.
Ficou olhando, pensando talvez nas inúmeras vezes em que, desde a infância assistira aquela cena com irmãos, primos, amigos.
Os olhos avermelhados indicavam que tinha chorado. Em qualquer bar da cidade, a cada dose ingerida, devia ter reclamado a triste sorte, se arrependido das incontáveis surras infligidas ao menino e das tantas oportunidades que perdera de ir para o “campinho” de terra batida jogar futebol com ele.
A mãe permanecia sentada no sofá roto. Abraçada à bola de capotão rasgada e envelhecida, soluçava baixinho.
A bola era o presente preferido do filho. Brinquedo que ela resgatara do lixo residencial de uma das patroas e levara para casa, certa de que faria a alegria das crianças.
Fez. Especialmente para Anjinho.
De manhã ele nunca se queixava da falta do leite ou do pão. Passava pela mesa normalmente vazia e seguia em direção à pelota inerte, embaixo do armário da cozinha.
Ao longo da noite, os irmãos se revezavam entre o aconchego materno e as brincadeiras na rua.
Situações como aquela eram propícias para o encontro com outras crianças, conhecer parentes distantes, receber a visita de pessoas diferentes.
Os vizinhos providenciaram um lanche noturno.
Café, pão com mortadela e refrigerante.
Os irmãos agradeceram Anjinho. Por causa dele apreciavam aquele banquete e tinham liberdade para brincar sem os sobressaltos provocados pela embriaguez do pai.
Durante a madrugada a casa se esvaziou e Anjinho quase ficou sem companhia, mas ao nascer do dia todos foram se aproximando novamente.
Um religioso foi chamado para fazer oração.
Só uma moradora do bairro aceitou a incumbência.
Acostumada à miséria já não se escandalizava ante a pobreza, apenas se perguntava se a tirania que submetia tantas pessoas à marginalidade um dia iria acabar.
Entrou na casa sem reboco, com portas e janelas improvisadas. Convocou os presentes para o ritual de despedida.
Para espanto de todos , os pais do menino se abraçaram. Os irmãos foram se aproximando, achando engraçada a consternação que presenciavam, festejando a sensação de ao menos uma vez na vida, ter a família digna de toda a atenção.
A oradora tirou o livro e um rosário de dentro da bolsa de tecido que trazia a tiracolo, antes perguntou aos familiares o que tinha sido.
“Começou com uma febre que não cortava. Levou no hospital, mas o médico dizia que não era nada. Cinco dias assim.”
A oradora voltou-se para o menino.
“Mais um”. Ela se condoeu olhando para Anjinho, o corpo magro e pálido descansando no “caixãozinho” branco.
Aquele não sofreria mais as injustiças do mundo, ela pensou iniciando a oração.