Bianca

Ela chegou cinco minutos mais tarde do que havíamos combinado no dia anterior e quase não a reconheci, pois usava luvas amarelas, um gorro peruano colorido e óculos escuros. Identifiquei-a num segundo instante, por causa dos sapatos rotos, do jeans rasgado nos joelhos e da voz doce e límpida a lhe denunciar a agudeza de espírito.

- Boa noite - ela disse. Parecia animada.

Contudo, o dia começara horrível. Plínio, meu gato, havia caído do 13° andar e, ao que tudo indicava, caíra pela sétima e última vez, para nunca mais levantar. Agora até o meu avô eternamente doente parecia ter mais vida que ele. A única forma daquilo se tornar uma boa noite era se Bianca se entregasse para mim, mas apenas poder vê-la e conversar com ela já era motivo para a minha noite ficar mais alegre e iluminada. É claro que ela não precisava saber desses detalhes, ou melhor, não precisava ouvir-me contar isso a ela ou a outra pessoa qualquer. Falei-lhe apenas do amigo que abandonara o mundo sensível, da dor na perna direita, da rotina dentro e fora do trabalho.

- Meus pêsames - ela disse, erguendo os óculos e franzindo o cenho. - Conheci um advogado que caiu da sacada. Há dois meses. Irônico não?

Perguntei-lhe que ironia poderia haver naquilo.

- Ele contornou a lei dos homens, mas não a lei da gravidade - explicou.

- Uma edição completa de Guerra e Paz cair sobre a cabeça de alguém que não gostaria de morrer antes de ler Guerra e Paz. Isso é ironia - comentei, antes de entrarmos no corredor.

Na última vez que nos vimos, três horas mais cedo, ela estava parada em frente ao banheiro masculino e discutia fervorosamente com Gabriel e Janaína, dois amigos nossos. Bianca ria-se, falando com convicção. Algo sobre Lutero ser um proto-nazista mais extremista e eficiente que Nietzsche. Gabriel tatuara o rosto do filósofo alemão em um dos braços e defendia que se tratava de um símbolo perfeito de virilidade, sexualidade e erotismo.

- Bah, detesto Nietzsche! - exclamou Bianca. - Que sexualidade um sujeito sexualmente insatisfeito poderia exalar?

Gabriel irritou-se.

- Vamos a um motel? Eu mostro-lhe!

- Sou claustrofóbica.

- Escolhemos um quarto bem grande - ele insistiu.

- Tenho anorexia. Um tipo raro. Anorexia claustrofóbica antimotéica.

- Trepa onde? Atrás das flores? Com o jardineiro? Ou prefere dar para o porteiro?

- Eu sou uma porteira também.

- Arquiteta!

- Toda mulher deve ser a porteira de sua própria xoxota.

Bianca deu de ombros, recolocou os fones de ouvido. Gabriel continuou a falar.

- Eu, aqui, querendo ouvir gente morta, e gente viva tagarelando no meu ouvido! - exclamou Bianca, esquivando-se. Gabriel insistiu, tocou-a.

- Mas é minha ex... - ele argumentou quando Janaína pousou a mão sobre seu o ombro.

- Sua ex, não, filho. Ex-sua - disse Janaína, piscando-lhe. - Ela disse, com razão, que cada mulher é dona de seu corpo e abre a pepeca para quem quiser. Acho que ela não o quer.

"Achar", ali, era um eufemismo. Como o pênis de Gabriel não era claustrofóbico, teria que procurar outra garota ou se contentar com a própria imaginação.

Agora eu dava por falta de um livro, retornei à sala e encontrei Patricia sentada ao fundo, rabiscando. Ela estendeu a cartolina assim que me aproximei.

- Parece um tanque de guerra?

- Depois da guerra talvez.

- Foi o que pensei - ela disse, suspirando.

Perguntou-me se lhe poderia desenhar um tanque de guerra para um trabalho. Um tanque de guerra que não parecesse destruído por uma guerra. Eu assenti.

Do patio, Janaína gritou depois de um minuto. Patricia apoiou-se na janela, depois perguntou:

- Por que você quer que ele desça?

- Para chegar aqui embaixo.

- Tem uma garota o chamando - Patricia disse depois de se virar para mim.

Entreguei-lhe o desenho, apanhei o livro que esquecera embaixo da carteira e desci as escadas correndo.

- Quem era aquela? - Bianca disse. - Vamos perder o último trem.

- Pegamos o que passar depois do último.

Descemos mais escadas. Marcelo nos encontrara no portão, estreitamos as mãos e ele seguiu conosco em direção ao ponto de ônibus.

- Tem certeza de que não quer dar um rolê com a gente?

Ele tinha uma videoconferência marcada para depois do almoço, um bate-papo sobre a obra de Erich von Däniken: "Eram os Deuses Astronautas?". Bianca parabenizou-o, mostrou interesse, fez algumas perguntas. Eu disse que a vida virtual de Marcelo era bem mais agitada que a nossa. Tornara-se um formador de opinião!

Marcelo balançou a cabeça, indeciso.

- Eu costumo pensar que existem ao menos duas formas de vida virtual, uma dentro e outra fora da internet e que a segunda existe muito antes da internet - objetou ele, acendendo um cigarro. - Tenho conta no Facebook? Tenho, mas não adiciono amigos virtuais, pois apenas os tolero fora das redes sociais, na realidade nua e crua do dia a dia, onde invariavelmente esbarro em algum deles como um homem que se depara com a parede. Não me refiro a vocês, claro.

Ele era o administrador de um site que alcançara certa popularidade.

- É um site sobre filosofia da ciência - ele esclareceu. - Publicamos artigos combatendo pseudociências, pseudofilosofias.

- Combatem algumas, defendem outras - corrigiu Bianca.

- Quais defendemos?

- Especismo, liberalismo, desigualitarismo. É impossível uma libertação animal sem uma versão vegana da Revolução Francesa.

- Evitamos tocar em questões políticas - suspirou ele, encolhendo os ombros. - Cristãos chamando comunistas de assassinos depois de matarem hereges, comunistas chamando cristãos de assassinos e revidando com selvageria, ateus liberais chamando comunistas e cristãos de assassinos e ignorando que muitos comunistas eram ateus e que os hereges também assassinavam cristãos... Eu sou um homem estúpido, mas não burro.

- E qual é a diferença entre um homem estúpido e um homem burro? - perguntei.

- Se eu fosse um homem estúpido, e não burro, eu saberia a diferença. Como disse, é complicado lidar com política. Cheguei a ter uma discussão com um colega. Ele parecia ter um demônio nos ouvidos. Perguntei: "por que você se esforça tanto para dar sentido à masturbação mental de Heidegger e não faz o mínimo esforço para me compreender?"

- Mas tornou-se famoso - eu disse.

- Há tantas pessoas famosas hoje em dia que a maioria delas é totalmente desconhecida.

- Então os discípulos de Galileu e Giordano Bruno temem perder seguidores? - perguntou Bianca, fazendo-me rir. - É verdade que nem tudo o que é "ecológico" é bom; o couro ecológico por exemplo. Mas a obsolescência programada está acabando com os recursos naturais e o meio ambiente. Além do capitalismo, e talvez de Deus, o que mais é eterno? Você não pode ter uma sociedade livre de pseudociências sem uma sociedade. O nome do site poderia ser Ciência e Apatia. Ciência e Apatia, a Caminho de Uma Distopia. Legal, não? É pós-política. O que acham do meu argumento miltonfriediano contra a existência de Deus? Jesus é Deus. Jesus prometeu dar um almoço grátis no céu. Não existe almoço grátis. Logo, Deus não existe. Ou talvez prefiram o meu argumento teatcheriano contra à trindade, contra à família, contra à igreja e contra a existência do Estado: Não existe sociedade. Existem apenas indivíduos. Logo, não existe trindade, família, igreja nem Estado.

- Ironias e mais ironias!

- O feminismo, creio eu...

- Não vá me dizer que é feminista - ele interrompeu.

- Algum problema?

- Nem tudo o que reluz é ouro.

- Nem tudo o não é ouro é ruim. Lembre-se de Midas!

- Conheço duas feministas e, perdoe-me a franqueza, posso garantir que são duas garotas verdadeiramente estúpidas.

- Conheço o triplo de democratas estúpidos e, apesar disso, sou democrata.

Eu estendi a mão em sinal de aprovação, Bianca espalmou-a.

- Há feministas que só sabem mostrar os peitos, mas há conservadores que só sabem mostrar versículos indecentes da Bíblia - eu disse.

- A democracia é um paradoxo - Marcelo comentou, ajeitando a gola da camisa. - Você tem o direito de falar, mas ninguém tem a obrigação de ouvir. Pensem comigo. Se Abraão convenceu Deus a não matar a Ló e suas filhas, por que a democracia moderna e representativa não pode convencê-lo a não torturar com o inferno ou condenar gays? Acho Deus pouco civilizado, antiquado. Os cristão poderiam se basear nisso para defenderem o universalismo. O feminismo...

- Feminismos.

- OK - concordou ele. - Beyonce é feminista e posso garantir que, como cidadão efeminado do Terceiro Mundo, eu sou muito mais oprimido pelo patriarcado que ela. Isso mesmo. Homens também são vítimas do patriarcado, vítimas do machismo, inclusive de machismo de mulheres, que são favorecidas não por serem mulheres, mas pelo discurso machista que defendem. Uma mãe religiosa censurando o filho efeminado, por exemplo. Ganham mídia, visibilidade.

Assentimos.

- De acordo - Bianca disse antes de atravessarmos a rua. Marcelo gemeu quando o sinal ficou vermelho, quase tropeçou.

- Você se assusta muito facilmente - eu disse.

- Grandes tragédias ocorrem muito facilmente.

Passamos diante de uma igreja.

- Você não vê relógio em bancos, hospitais, shoppings e em diversas igrejas - eu disse. - É como se dentro deles reinasse a atemporalidade e, ao sair, você se deparasse com um mundo envelhecido. O lado bom da religiosidade é que a sociedade reconhece a necessidade de um tempo para ser dedicado à atividade religiosa e que você, se for esperto, poderá dedicar este tempo a atividades nem um pouco religiosas.

Aproximávamo-nos do ponto de ônibus.

- Jesus era um hippie - eu prossegui, olhando para a entrada de outra igreja. - Consigo imaginá-lo no Festival de Woodstock fumando um baseado. Quem mais faria o Juízo Final usando uma bermuda? Quem não julga as pessoas pela aparência não deve se preocupar com a própria aparência! Talvez a voz de Deus se assemelhe mais à do Sid-preguiça do que à do Cid Moreira. O cético que ama ostentar a imagem de desmistificador venera a superstição, pois vê nela uma razão para se sentir superior aos demais: a massa ignorante. É de seu total interesse que as superstições se renovem e que seus galhos outra vez deem frutos. Golpeiam o tronco, mas jamais a raiz. Eis o próprio cético se torna escravo da alienação!

Marcelo passou o seu braço esquerdo por dentro do meu braço direito, olhou para Bianca.

- Posso conversar com meu amigo a sós? Prometo que o devolvo em um minuto.

- Ele é todo seu - ela disse.

Assim que ela se afastou, ele perguntou-me:

- Uma ladra de corações, não? Quando vai beijá-la? Lembrei-me agora que já a beijou...

- Isso foi há um ano. Na época, eu ouvia Radiohead!

- Não gosta mais? Perdeu o encanto?

- Quem gosta de Roger Walters e Ken Loach não pode gostar muito de Radiohead, principalmente de um ano para cá.

Marcelo pareceu não entender.

- E da pequena? Beijou-a dias atrás! Não minta.

- Isso foi há duas semanas, quem garante que ainda gosta de mim? Duas pessoas que se beijaram uma vez não possuem a obrigação de se beirarem outra vez. Deixo rolar. Sem expectativas.

(fim da primeira parte)

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