OCUPAÇÃO MAUÁ

OCUPAÇÃO MAUÁ

A casa exalava os odores do alho frito. Das cebolas e pimentas. As janelas não suportavam o leve vapor. Que escapava pelas bordas das tampas. Das panelas fumegantes. E se embaçavam embaraçadas. Entre as paredes cinzas e descascadas. As sombras se derramando. E a quentura do fogão. Extraordinariamente amarrado ao fogo. Às comidas em franca alquimia.

As mãos de Jerusa eram exatas. Dedos de língua. Saboreavam os tempêros. Rasgavam o ar polvilhando sal e salsa. Dançarinos, rodopiavam farinhas e lascas de gengibre. Os sabores borbulhavam bêbados de êxtase.

Assim Jerusa desvendava seu talento. Exercia sua arte de mestre-cuca. E disso nem se orgulhava. Era-lhe natural. Era a sua vida. A única que conhecia.

Sonhava em meio aos aromas. Teria sua casinha rodeada de verduras. Ervas. Amava os vários tons do verde. Amava os cheiros que criava orquestrando grãos, legumes e carnes. Uma efervescência de desejos lhe agitava a alma. A doçura e a salinidade eram os temas da sua história de vida. Cada receita era reinventada. Cada bocado saboreado era independente de técnicas tradicionais. Jerusa sabia os truques para ir além das aparências. E alcançar o verdadeiro gosto.

Destinara-se a ajudar os vizinhos. Eles eram novecentos e quarenta. Eram seus amigos. A família que jamais tivera. Ensinava os segredos dos alimentos. E de sobra alimentava pessoas em situação de rua.

No entanto, nem tudo dependia dela. Tudo o que fazia, até então, acabaria revelando ingredientes intragáveis. Para as delícias dos sabores.

Ouvira dizer que teriam que sair dali. Estava lá há dez anos. Desde que viera de Minas. Ela e a vó Tereza Conceição. Que trabalhava como empregada doméstica. E que um dia, simplesmente não voltou. Jerusa estava órfã. De tudo.

Continuava a vasculhar as feiras livres. Catando qualquer coisa debaixo das barracas. Como faziam. Ela e a avó.

Agora teria que deixar sua casa. “Ah, meu Deus, não quero nem pensar nisso!” – suspirava e rezava. “Deus abençoe o coração do juiz e proprietários do prédio para que cheguem num acordo e que a gente não fique sem teto para morar”.

A vida de Jerusa estava aglutinada de repetições. De memórias saborosas. Poéticas. Até aquele instante. Em que tudo deveria desaparecer. De uma vez por todas. Nada voltaria mais. Seria sombra dos próprios gestos. Nem o belo da leveza nos movimentos faria o menor sentido. Nem poderia corrigir o sal. Sua existência estaria como o fio de azeite.

Duzentas e trinta e sete famílias estariam desabrigadas. Suas cento e oitenta crianças e pré-adolescentes estariam sem teto.

A reintegração de posse da Ocupação Mauá fora acolhida pelo juiz Carlos Eduardo Borges Fantacini. Chegara o momento. Da desocupação.

Do último andar do prédio. Jerusa olhava. A Estação da Luz. Lembrava de quando chegara por ali. Vó Teresa Conceição estava ao seu lado, agora. Sorria. Abraçadas subiram até o topo. Saboreavam uma leveza única.

As luzes misturavam. Mesclavam.

O azul marinho doce do céu. Com o marrom salgado da terra.

Que surpreendente iguaria!

Mírian Cerqueira Leite

Mileite
Enviado por Mileite em 15/08/2017
Reeditado em 15/08/2017
Código do texto: T6084247
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