Pássaros tolos e órfãos

- Quer mesmo ouvir?

- Desembuche!

O trem chacoalhava depois de ultrapassado o túnel, a pequena suspirou antes de prosseguir. Concordou que era melhor desembuchar.

- Você conseguiria disfarçar a dor e sorrir enquanto alguém lhe perfura a barriga com uma faca? Seria capaz de agir naturalmente, pedir licença, desejar um bom dia durante os minutos de tortura? Nem Jesus riu enquanto era crucificado. E se de repente você se visse transferida para um universo estranho, onde receber um beijo causasse a mesma dor que se sente ao ser crucificada, ao receber a pontada de uma faca ou um tiro de espingarda? Pois bem, eu sinto essa dor, sinto que estou neste universo particular. Talvez não se trate de dor física, mas moral. Acho-me incapaz de explicar. Apenas uma alma amiga e atormentada seria capaz de compreender.

- Não somos amigas.

- Disse que essa seria uma conversa amigável.

- Mas não que somos amigas.

- OK - disse a primeira. - Essa conversa não está sendo nem um pouco amigável.

- Você riu do meu pai!

- Nosso pai. Não dou risada das desgraças por maldade, simplesmente sou incapaz de não rir quando não se deve rir, permanecer calada quando não se deve falar, ficar parada quando não se deve mexer o corpo. Você ficou muito sensível depois que se divorciou.

- Não houve divórcio - disse a segunda. - Divórcio é quando se quebra oficialmente um pacto. Oficialmente, determinamos que nossa união duraria cinco anos. Durou seis.

- Então quebraram porque não se separaram no ano anterior.

- Cale-se!

A mais nova se chamava Ilda, a mais velha se chamava Carla. Ilda era filha adotiva, Carla tinha os olhos do pai.

- Você deve concordar comigo, reconhecer que a mulherzinha que papai arranjou não passa de uma mercenária - disse Ilda. - Ousou beijar meu rosto, como Judas beijou Jesus.

- Papai não é nenhuma criança - respondeu Carla. - Sabe o que faz, lembre-se de que escolheu a nossa mãe. Casou-se novamente, o que é natural que todo viúvo faça. Pobre Tainara! Você não deveria ter cuspido no rosto dela.

- Qual é a diferença entre um beijo indesejado e um cuspe? Ela me emporcalhou com a sua saliva horrenda primeiro, seu batom. E, como disse, seu beijo foi como uma facada repentina e inesperada. Por que disse que não somos amigas?

- Eu perguntei primeiro - lembrou Carla.

- As questões devem ser respondidas de acordo com a relevância que possuem e não de acordo com certas normas sociais tolas. Talvez haja algo de hereditário nessa mania de se apaixonar pela pessoa errada. Papai e a sonsa. Você e o Diogo, o Alfredo.

- Abomino o Alfredo!

- Aceitou ir com ele ao cinema.

- E o que tem de mais? Era o diabo me convidando ao paraíso.

- O mesmo pode ser dito sobre o sexo e o casamento.

- O lado bom de ter uma vida medíocre é não correr o risco de acabar retratada em algum filme por uma atriz branca ou semibranca - disse Ilda, olhando através da janela, os olhos voltados para as montanhas. Muitas árvores, vacas. Um porco gordo e rosado.

No fundo do vagão, três jovens conversavam animadamente. Agora o mais articulado deles dizia:

- A maioria daqueles que acusam Marx de não ter sido um bom pai ignora que ele deixou o capitalismo cuidar de sua família. O conservadorismo consiste na descrença de que o homem secular, corrompido pelo pecado original, possa fazer o bem. Em suma, é a descrença de que possam existir bons samaritanos a despeito de Jesus ter lhes reconhecido a existência. Do mesmo modo que o fariseu zomba da filosofia do bom samaritano, o conservador zomba da filosofia do progressista.

Carla estava com a mente distante. Aproximou lentamente os lábios do ouvido de Ilda, sussurrou:

- O rapaz que fica olhando para você.

Ilda deu de ombros.

- Olhando para os meu decote, você quer dizer.

- Não seja moralista - tornou Carla. - Se um sujeito passasse as mãos aí, estaria tocando em você e não no seu decote. Sorria.

Ilda esboçou um sorriso, o sujeito, que desceria na próxima estação, sorriu de volta. Faíscas lhe saltavam dos olhos.

Encorajado, mas visivelmente encabulado, ele se aproximou e cumprimentou-a como quem cumprimenta a um velho conhecido; o trem ameaçou parar. Tinha que ser sucinto, eficiente.

- Perdoe a minha ousadia, mas eu adoraria poder ligar para você e conversar um pouco - ele disse. - Se não tem interesse em falar comigo, passe-me o número errado, mas me passe alguma coisa palpável, uma distração. Assim eu entenderei o recado.

Ilda não abriu a boca, apenas rabiscou um pedaço de papel que rasgara da agenda; as portas se abriram.

- Esse é o número certo - ele continuou. - Você olhou para o lado esquerdo enquanto escrevia. As pessoas olham para o lado esquerdo quando tentam lembrar de alguma coisa. Pensando bem, você pode ter tentado se lembrar de apenas uma parte do número certo, para passar o número errado. Desculpe, desculpe, aceitarei a sua decisão.

Despediu-se com um movimento impreciso de cabeça, as portas se fecharam.

- Deu o número certo para ele? - perguntou Carla.

- Por que não daria?

- Ilda!

- O que foi?

- Tudo bem mentir para um estranho, mas para a própria irmã! Eu sei que aquele não é o seu número. Devia ter passado o verdadeiro!

- Se não é o meu número verdadeiro, é o meu número falso. Mas ainda assim é o meu número - respondeu Ilda.

Carla beliscou-a, Ilda escreveu num outro pedaço de papel e, antes de jogá-lo pela janela, gritou:

- Hei! O meu número! O meu número!

O trem partia.

Ricardo pensou em jogar fora o pedaço de papel com o primeiro número, hesitou. E se fosse aquele? E se ela se arrependera de passar o verdadeiro e entregara um falso, para que ele se desfizesse do outro? Bem, um deles deveria ser o certo. Achou melhor levar os dois e sentiu-se contente ao pensar que por algum instante ele tenha parecido interessante aos olhos dela.

Ligou dois dias depois. O primeiro número caiu em um tal de Leonardo. Um senhor de meia idade, voz grave, mal educado.

- Eu tenho cara de mulher?

- Creio que não. Talvez. Faz muito tempo que o senhor possui esse número? Mais de uma semana?

Desligou.

A outra ligação não vingou. Deixou para ligar novamente depois que chegasse do trabalho. A voz do outro lado da linha era bem feminina e jovial dessa vez.

- Moça, não sei se é fome ou sede, sua boca me atiça. E o que dizer de seus olhos? Dois lagos calmos, negridão de uma noite silenciosa. Quero adentrar o absoluto que se desenha na sua formosa face, o sol ofuscando as nuvens.

Ilda riu-se.

- Por favor, eu já conheço esse papo de "você é a mulher mais linda do mundo".

- Tem certeza de que você é Marilyn Monroe? Deixemos os mortos e falemos de nós dois. Sejamos egoístas, mas generosos um com o outro. O que é o mel em comparação a doçura de sua boca?

- Jamais o beijei.

- Isso é verdade, mas... é como o festival de Woodstock ou a Revolução Francesa - ele disse. - Costumo ter saudades de tempos e de coisas que não vivi.

- Isso é loucura! Loucura!

- Como ousa chamar de utopia um sonho que não se propõe a ser realizável? Posso prosseguir com meu amor platônico, embora prefira o eclipse, quando a Terra desaparece sob um manto negro, para que o sol e a lua possam fazer amor. Gostaria muito de encontrá-la.

- Onde?

- Fora dos meus sonhos e do meu coração, materializada. Em carne e ossos. E perfume.

- Interessante.

- Na frente da estação?

- Sim, sim.

- Quando? Amanhã?

- Amanhã não posso.

- Depois de amanhã?

- Pode ser. Em qual horário?

Ilda chegou um pouco mais cedo. Apreensiva, abordou uma moça que passeava com a cadelinha pela calçada.

- Posso lhe fazer uma pergunta?

- Isso já é uma pergunta.

- Perfeitamente. Mas me refiro a uma pergunta específica.

- Acho que tenho alguns minutos ainda.

- Suponhamos que sou uma canibal civilizada e que um conhecido queira, por alguma razão, desfazer-se do próprio pênis. Se o meu marido não gostar da ideia de comer carne humana, sobretudo um pênis, e eu o fizer ocultamente, estarei traindo-o? Se sim, meu marido deveria ter controle sobre tudo o que como? Se não, por que eu posso desfrutar ocultamente do prazer gastronômico proporcionado pelo pênis de outro, mas não posso também desfrutar ocultamente de prazer sexual?

- Por que pergunta tais coisas? Não sabe que filosofia e amor não se combinam?

- Fique tranquila, eu não sou casada.

- Mas eu sou. Como dormirei agora?

Antes de encontrar-se com Ilda, Ricardo parou para conversar com um casal que havia dias não encontrava. Perguntou sobre o que discutiam. O homem de sobrancelhas negras balançou a cabeça, disse:

- Não entendo como uma pessoa pode falar bem de Beethoven sem nunca ter lido um livro dele. Você irá me dizer que Beethoven era músico, o que é irrelevante já que penso que jamais se deve falar bem de quem não tenha escrito um belo livro, plantado uma árvore e feito um filho.

- Beethoven era extraordinário - respondeu a mulher de botas pretas. - Diga a ele, Ricardo. É um louco!

- Sim, era extraordinário.

Ela tinha os cabelos louros e encaracolados. O homem negro e magro usava uma camiseta curta, comentou:

- O constrangimento de expor os pelos pubianos é a proximidade entre os pelos e o sexo. Contudo, a ideia de proximidade é relativa, ou seja, os cabelos da cabeça e as sobrancelhas são igualmente constrangedores.

- Encontrei o Jonas dia desses - Ricardo disse. - Bom saber que vocês possuem a mente aberta.

O colega deu de ombros, riu-se.

- Bem, ele já estava dentro dela emocionalmente. Que mal haveria se também estivesse fisicamente?

Ilda estava em frente a um bar quando avistou a camisa colorida de Ricardo e o sol era agradável. Um transeunte de chapéu e gravata reconheceu a pequena por acaso, parou, aproximou-se, conversou brevemente com ela e despediu-se. Ilda não parecia confortável. Esboçou uma careta, depois que o tal sujeito se afastou puxou uma cordinha invisível e imitou o som da descarga.

- Não o mando para o inferno, pois é ele mesmo um inferno ambulante - disse.

Ricardo sugeriu que tomassem uma cerveja. Ilda assentiu. O dono do bar era um homem forte e possuía uma vasta barba branca. Ele discutia com uma mulher não muito mais nova que ele. O lugar talvez estivesse cheio.

- Recentemente fiz uma grande descoberta sobre Simone de Beauvoir - disse o dono do bar. - Ela tinha uma bela bunda. Mas isso não é o mais importante. Pense que somos todos partes de um grande cérebro, que nossa individualidade seja apenas uma parte dele. A morte ou o nascimento de uma pessoa é como a morte ou o nascimento de um neurônio. Beauvoir é um neurônio dentro de outros neurônios. Descansa, mas não nos permite descansar.

A mulher que o ouvia com atenção usava uma saia amarela e chinelos de dedo.

- Morrer não é descansar - ela respondeu. - A morte é a ausência de trabalho e de descanso. Se fosse o contrário, todos nasceriam com energia infinita, acumulada na pré-existência.

Ilda e Ricardo caminharam em direção a uma mesa vazia e cumprimentaram um pequeno grupo que se divertia com a mesa de sinuca. Haviam pedido uma cerveja e alguns salgadinhos. Ilda tinha um rabo de cavalo.

- Esse é um daqueles momentos em que adoro ser eu mesmo - Ricardo disse.

Quando questionada sobre o que gostaria de ser, Ilda respondeu:

- Bem, eu queria ser Deus, mas quando nasci infelizmente já havia um. E ele era monoteísta.

- Já ouviu falar em união hipostática? - tornou ele, arqueando as sobrancelhas.

Ela assentiu.

- A alegação de que Jesus é onisciente e a de que não é onisciente não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, pois envolve contradição - continuou ele. - Trata-se de apenas uma pessoa, não duas. Não basta dizer que uma segunda natureza era diferente da primeira. Também não é a minha "natureza humana" que sabe que estou falando com você, mas a minha pessoa é quem sabe.

- É o mistério divino - ela disse.

- Não é possível, como disse - tornou Ricardo, mostrando as mãos. - Se alguém sabe algo, tal conhecimento é da pessoa e não da "natureza" dela. A "natureza" não sabe nada. É uma linguagem obscura, irracionalista.

- Não acha a teoria solipsista tentadora? - tornou Ilda, apoiando os cotovelos sobre a mesa. - Ao menos em parte? Eu sou, sobretudo, a minha mente; o universo é o meu corpo, a minha extensão e as minhas outras mentes. Lúcifer, o meu sexo. Sou tudo o que há, que houve e haverá. Chamo isso de ildismo. De Ilda. Uma espécie de panteísmo pós-moderno. Panateísmo.

- Não, o universo não é o seu corpo - respondeu ele, rindo-se.

- Por que não?

- Ora!, por exemplo, veja aquelas cadeiras ali, no canto. Você não pode levá-las para casa, porque não são suas. Se fossem parte do seu corpo, poderia fazer o que quisesse com elas.

- Tente tocar o cotovelo com a língua.

Ricardo riu-se e ela perguntou:

- Não consegue? Não são o "seu" cotovelo e a "sua" língua? Como não pode levá-las aonde quiser? Seu poder sobre o "seu" corpo é limitado.

- OK. Outro exemplo. O meu cabelo. Eu corto do jeito que eu quero. Não do jeito que você quer. É meu!

- Tudo funciona do jeito que você quer? Absolutamente. A pele irá enrugar e o cabelo irá embranquecer independentemente de qual seja a sua vontade. Se você comer algo estragado, o intestino o obrigará a colocar tudo para fora. Digamos que eles compõem o seu pseudo-corpo, pois se trata na verdade do meu corpo.

- Quanta presunção! O universo existia muito antes de você existir, antes da sua mente limitada existir.

- O meu corpo se formou antes da minha mente - explicou Ilda. - Não nego isso. Assim como você não nega que fora um feto um dia, nem que uma massa informe precedera a formação de suas terminações nervosas.

O dono do bar trouxe uma nova ficha para o grupo na mesa de sinuca, a mulher de saia amarela e chinelos de dedo fumava um cigarro e ainda conversava com ele, disse:

- É contestável que quem se castra, peca uma vez. Mas é incontestável que quem não se castra, peca inúmeras vezes.

Um segundo barbudo saiu do banheiro, irritado. Os companheiros o haviam deixado sem papel para se limpar, um agnóstico engraçadinho entregou-lhe uma Bíblia. Logo se deu conta de que de nada adiantaria reclamar. Suspirou. Procurou uma genealogia qualquer no Pentateuco. Sequer lhe passava a ideia de escolher uma passagem dos Evangelhos ou do Apocalipse.

- Se eu ficar com câncer no cu, eu acabo com vocês! - exclamou. - Mijou fora de novo? - perguntou assim que se juntava à mesa.

- Sou especialista em bocetas e não em vasos - resmungou o que usara o banheiro antes dele.

Todos riram.

O segundo barbudo enfezou-se, o outro o abraçou.

- Podemos viver em paz - disse. - Eu respeito o seu cu sujo e você respeita a minha boca suja.

Todos riram novamente.

- É a sua vez de jogar - acrescentou, estapeando-lhe o traseiro gordo.

Uma morena ria-se com eles, braços e pernas grandes, sua barriga roncou. O ruivo silencioso que encarava o televisor arregalou os olhos, fitou-a.

- Comeu pela manhã? - perguntou.

A morena continuou a rir, olhou para o lado, disse:

- Comi pão, mas queria comer mesmo o seu irmão.

Um homem magro e careca que usava gola alta encolheu os ombros.

O segundo barbudo disse que assim o amigo perderia a virgindade.

- Eu ainda sou virgem de mulheres virgens - revelou o homem magro e careca.

A TV falava sobre gente morta.

Um tal de Valdir passou giz no taco, riu-se, comentou:

- Trepar com uma virgem é como tomar cerveja em lata. Primeiro você precisa romper o lacre, para depois tirar proveito do que há dentro.

Era bastante habilidoso com o taco.

A morena aproximou-se e abraçou o homem magro e careca, apertou-o.

- Aceita um café? - tornou ele, ela respondeu:

- Gosto tanto de você que qualquer coisa que você me ofereça, eu aceito.

- Ofereça veneno! - alguém aconselhou.

Ela estendeu as mãos, prendeu o rosto do homem magro e careca e lhe roubou um beijo; riu-se, disse:

- Se você fosse uma cadeira numa loja, eu poderia pagar um bom preço por você, levá-lo para casa, sentar em você. Então meu marido riria como um garoto, vendo-me colocar as pernas da cadeira sobre a cama, abraçá-la e sentar nela.

- Separe-se do outro, case-se com ele - sugeriu o segundo barbudo.

- Não - ela disse. - Uma aliança no dedo é mais abominável do que uma coleira no pescoço.

- Dane-se! - resmungou ele de volta. - Somos todos fábricas de bosta, seres cagantes.

- Mais uma cerveja! - interrompeu o dono do bar. - Pela conta da casa!

- Seus ouvidos são altos - Ilda disse. - Que tal conversarmos deitados?

Rogério ofereceu mais uma dose e Ilda rejeitou.

- Se eu for para a cama, quero estar sóbria - disse. - De que adianta ir ao céu e não se lembrar depois?

- Onde?

- Na minha casa.

- E se alguém aparecer?

- Digo que apaguei a luz e o confundi com meu marido.

- É o seu primeiro relacionamento extraconjugal?

- Não quero falar sobre isso.

- Por que não?

- Não sou casada. Por que você sempre tem que estragar tudo?

- Como assim? Mal nos conhecemos.

- Tem razão. Mas eu não vou conversar sobre esse assunto, entendeu? Se você quiser falar a respeito, falará sozinho.

Ilda usava uma camisola branca e fez-se ouvir do quarto quando disse:

- Saia do sofá e venha deitar aqui, na cama. Não quero que pareçamos um casal. Meus pais eram assim. Minha mãe deitava na cama e meu pai, no sofá. Venha.

_