Uma prosa

-Ou, Quitéria. Pede pra Dorcas recolher aquelas tralhas. Acabou de dar no rádio que amanhã não vai chover. E quando fala assim é sinal de chuva na certa.

-Escutou seu pai, Dorcas?

-Estou indo.

-Não acertam uma. Ah, se minha mãe fosse viva. Aquela lá não errava. Sentia no ar se ia chover ou não. Conhecia os rabiscos no céu. Céu de chuva.

-Sabedoria popular, pai.

-E eu não sei? Coisa que a gente aprende assim, na própria vivência. Por isso fico ressabiado de mandar vocês pra escola. Aprender o que?

-Fala assim não, Timóteo. Os tempos mudaram. O progresso, homem. Quem não vai pra escola fica atrás dos outros.

-Besteira. Não estudei e não estou atrás de ninguém. Uma gente diplomada que não sabe nem somar dois mais dois.

-Isso é verdade.

-“Tô” falando. Vê o filho do Anésio do armazém. Tanto estudo tem aquele rapaz. Não faz uma conta de cabeça de jeito nenhum. É tudo naquele bendito lápis atrás da orelha. O dia em que acabar os lápis decerto vão ter que fechar o armazém.

-Moço estudado, hein. Trabalhador. Dava um bom partido pra uma das meninas, mais pra frente.

-Sei não. Sei não se quero um burro desses de marido de minhas filhas.

-Antes um burro trabalhador do que um inteligente preguiçoso.

- Talvez. Será que a chuva demora?

-Já sei. Vai dizer que se sua mãe estivesse aqui era capaz de falar até se ia ser tempestade ou só chuvisqueiro.

- E ia mentir? Mãe era mulher que de tudo entendia um pouco. Foi parteira, não te falei?

-Umas mil vezes, pai.

-E repito outras mil. A gente tem que dar valor . Uma mulher sem estudo, criar sozinha sete filhos. No cabo da enxada. Vê se agora querem saber disso. Viu a mulher do Abílio? Só vaidade. Coitado do meu irmão.

- Mulher tem que se arrumar, pai. Ficar bonita.

-Dorcas está certa.“Vê” eu, toda esculachada por não me cuidar.

-Bobagem.

- Pronto, pai. Não tem mais nada ao relento. Se chover as coisas vão estar guardadas.

-Se chover não. Vai chover. Mariozinho Lopes acabou de fazer a previsão aqui na Mundial. Já viu o infeliz acertar alguma vez?

- O homem que dá a informação pra ele é meteorologista,pai.

- Que importa? Sei é que não vejo vantagem neste progresso de hoje. Essa gente brincando de ser Deus. Daqui a pouco vão inventar um aparelho que você aperta um botão e vê o mundo inteiro. Faz tudo sem sair de casa. Deus me livre.

- Ué, se foram até pra lua.

-Tá. E você acredita nesta mentira, Dorcas. “Cê “acredita, Quitéria?

- A professora diz que tem foto, pai.

-Não falo que esta tal de escola é só perda de tempo. Ou não ensina nada ou ensina errado. Não cancelo a matrícula de vocês porque sua mãe é contra.

- Sou mesmo. Não quero ver minhas filhas ignorantes. Basta eu.

- Você vai ver, Quitéria. Daqui a pouco estas meninas vão procurar emprego em fábrica. Trabalhar na roça, ser dona de casa, nem pensar. Se acharão no direito de ganhar salário igual dos homens. Perigoso acreditar que nem precisam casar.

- Isso não, Timóteo. Filha minha tem que casar bem e formar família. Meu sonho é ver as quatro vestidas de noiva.

- Você que não cuida não. Já reparou como a Norma é esquisita. Uma mania andar com livro pra cima e pra baixo. Está lá dentro lendo pras pequenas. Ainda mais essa. Influenciando as outras. Você que não cuide, Quitéria.

-Ave Maria. Vira esta boca pra lá, homem.

- O progresso. Escola, estudo e tudo mais. Deixando este mundo de cabeça pra baixo.

-Pai, o senhor não vai trazer os bois pra cima? Abrigar na cocheira? Se a chuva vier forte castiga os “coitadinhos” desprotegidos no meio do pasto.

-Chuva? Que chuva? Mariozinho Lopes acabou de anunciar na Mundial que não vai chover. Ou,Quitéria, traz aí meu fumo de corda. Vou enrolar outro cigarro

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 29/09/2017
Reeditado em 30/09/2017
Código do texto: T6127914
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