HAPPY HOUR (*)

A última vez que se viram, computadores não passavam de insólitas máquinas de filmes de ficção científica; telefones celulares e câmeras digitais ainda eram uma inimaginável utopia... Tudo isto sem mencionar os fax modens, pen drives, MP(s) de última geração, IPhones, e todas as inovações tecnológicas a caminho... O tão decantado terceiro milênio finalmente chegara. O mundo não era mais o mesmo. Eles também já não eram os mesmos... Encontraram-se por acaso, ao cair de uma ensolarada tarde de outono, em um bar do bairro de Moema, famoso por suas casas noturnas, comércio diversificado e modernos edifícios que não paravam de subir e de povoar o céu ...

Aguardavam que o tráfego fluísse, e se dispersassem as invisíveis partículas dos motores “flex power”, personagens cada vez mais presentes no caótico, desumano e, não raro, insensato e belicoso trânsito da metrópole...

Paulo, desde os tempos de bancos escolares, revelara-se inquieto, ousado e empreendedor. Otimista incorrigível, como bem gostava de frisar, vivia por aí dizendo que um dia a América ainda teria um presidente negro... Paulo, mais do que ninguém, sempre acreditou naquele sonho americano, nos alquimistas da nova era, e nas escadas que diziam levar ao paraíso...

Já fazia algum tempo que Paulo não usava lápis nem papel; tinha um lap top, um IPod, que tudo podia, e aquele celular multifuncional, que só faltava mesmo pensar...

“Argonauta dos sete mares virtuais”, como, com relativa frequência gostava de se auto definir, Paulo não tinha a menor dúvida de que navegar era preciso, nem que para isso tivesse de enfrentar o temível Cabo das Tormentas, o enigmático Triângulo das Bermudas, as águas revoltas do Golfo do México, ou, o remoto e frio Estreito de Magalhães. Paulo, definitivamente, não saberia mais viver em um mundo sem Internet. Navegar era preciso. Esse era o seu lema sempre que se via diante dos sete mares da tela do seu desk top pessoal...

Já Pedro parecia sentir-se desconfortável diante de todas aquelas (sic) “engenhocas digitais”, assim a elas se referia, e, ainda hoje, em pleno ano de 2017, ninguém o faria abrir mão de sua agenda com mapa mundi, planejamento mensal, tabela de pesos e medidas, aniversários, curiosidades etc e tal... E, claro, de seus preciosos manuscritos. Destes, então, nem se fala... Conservador convicto, Pedro, decididamente, não confiava no desalmado pragmatismo daquelas máquinas digitalizadas; nem mesmo nos robustos, austeros e herméticos caixas eletrônicos ele confiava...

Pedro achava que tudo, absolutamente tudo já estava escrito nas estrelas, e o que tivesse de ser, fatalmente seria... Com frequência, valia-se desses axiomas para justificar e defender os seus pontos de vista. Longe de ser pessimista, a verdade é que Pedro sentia-se impotente diante das injustiças de um mundo tomado por profetas televisivos, que, diante das câmeras, expurgavam demônios, curavam enfermos e vendiam felicidade a granel...

Pedro era mesmo um sujeito metódico, que, sem o menor constrangimento, e, até com uma ponta de orgulho, dizia-se pertencer a uma hipotética ONG denominada “Últimos Românticos de um “MundoPontoCom.”

Avessos a qualquer ideologia política, quer mais à direita, ou à esquerda, eram, sobretudo, dois humanistas; acreditavam na formação do caráter humano pela ética, solidariedade e amor ao próximo...

Haviam se formado em Administração de Empresas, mas, foi no comércio, que, coincidentemente, encontraram as suas verdadeiras vocações para, como atores sociais, adequarem-se, sabe-se lá a que preço, a um cenário cada vez mais capitalista, impessoal e competitivo....

Paulo trabalhava em uma concessionária de automóveis importados no bairro da Aclimação, famoso por sua topografia de curvas, aclives e declives, e por abrigar um parque homônimo, para onde acorriam, e ainda hoje acorrem, moradores, não apenas do entorno, mas também de outras regiões da cidade...

Paulo primava pela elegância, discrição e simpatia. Paulo era um verdadeiro “gentleman”. Que o digam as suas colegas de trabalho, ou, quem tivesse o privilégio de desfrutar da sua aprazível e inestimável companhia. Ainda que não pudesse fazer nada diante do impossível, do inexorável, Paulo sempre “tirava do bolso do casaco” uma palavra amiga, um sorriso, um gesto fraterno e acolhedor...

(Sic) “Não se aflija, amigo. O Universo conspira a seu favor, e isso é o que importa...” Era o que Paulo sempre dizia.

Pedro era corretor de imóveis. Trabalhava em uma imobilária de renome nas imediações da Vila Olímpia, bairro de classe média, referência em lojas de vestuário, gastronomia, e que, nos últimos anos, tornara-se um importante centro financeiro da cidade.

Diferentemente de Paulo, Pedro não tinha salário fixo. Recebia uma pequena ajuda de custo e comissões pelos negócios fechados, que, mesmo não sendo muitos, como era solteiro, garantiam-lhe um padrão de vida razoável, e, não raro, até mesmo, um ou outro momento de lazer...

Pedro tinha o hábito de folhear vários jornais. E fazia-o logo pela manhã, assim que chegava ao trabalho. Era preciso estar a par do sobe e desce do mercado financeiro, acionário e imobiliário. E por que não, deter-se por alguns minutos no caderno de esportes para saber das últimas notícias do time do coração. Mas, a bem da verdade, do que Pedro realmente mais gostava, era de acompanhar os movimentos geopolíticos e antropológicos do mundo em que vivia, e, até por isso, as pessoas, com relativa frequência, surpreendiam-se com (sic) a sua inesperada, mas sempre oportuna e bem vinda cultura geral.

Ambos tinham alma de artista. Paulo gostava de cantar aquelas baladas dos lendários Bob Dylan, Joan Baez e James Taylor. E fazia-o com muita propriedade, em especial, depois da primeira dose, afinal, era preciso lubrificar a garganta para poder soltar a voz que vinha do coração...

Pedro, por sua vez, escrevia poemas e narrativas. Admirava a poesia dos tempos de exílio de Gonçalves Dias, a irreverência lírica de Drumond, e a prosa crítica e futurista de George Orwell.

Já fazia alguns anos que Pedro estudava inglês, e até já se virava razoavelmente bem no idioma. Com relativa freqüência, Pedro alardeava aos quatro ventos, (sic) ser o inglês, o esperanto que realmente dera certo...

O grande objetivo de Pedro, contudo, era aprofundar-se na vida e obra de Emily Dickinson (1830-86), poetisa americana, a quem admirava, não apenas por sua própria história, mas, sobretudo, pelo olhar penetrante e tridimensional nas mais elementares nuances da vida, da morte, do amor e da natureza...

Deviam estar agora a caminho dos cinquenta. Pedro era um ou dois anos mais velho... Pareciam não acreditar que, depois de tantos anos, viam-se novamente frente a frente. Os dois quase não se reconheceram. Os primeiros cabelos brancos e sinais de calvice compunham as suas atuais fisionomias. Todavia, ainda guardavam o mesmo jeito de andar, de falar, de olhar, e, aquilo que mais os caracterizava, a mesma descontração, irreverência e senso de humor...

(sic)

“Eu não acredito que estou diante do meu velho e bom amigo Pedro.”

“Paulo!? Você por aqui!!! Há quanto tempo!!!”

Depois de trocarem os primeiros olhares e de se cumprimentarem calorosamente...

“O que v. tem feito da vida, Pedro!? Há quanto tempo não nos vemos. Que bom reencontrá-lo, sabê-lo assim , tão bem,..”

“Tenho andado por aí, amigo, atrás da felicidade, mas será que ela existe, Paulo, será!?”

Sensitivo como poucos, Paulo logo notou um quê de abandono no olhar perdido de Pedro.

“Que tal brindarmos aos “eternos amanhãs”, homem !?

Pedro e Paulo erguem os espumantes copos de cerveja, e, fazem um brinde ao futuro.

“Veja, Pedro !”

Paulo aponta para o alto...

“Veja Pedro, logo ali, bem ali, aquelas duas estrelinhas, tão perto uma da outra... Talvez, assim como nós, elas também conversem, ou, vai ver... lá do alto, na imensidão do céu, nem se deem conta de que estejam tão próximas...”

“Onde !? Não as consigo ver.”

“Ali, Pedro, bem à direita das três Marias. Está vendo agora !?”

“Agora sim.”

“E por falar em estrelas e em Marias, diga-me, amigo, você e a Dalva ainda estão juntos? Lembro-me de que você era apaixonado por ela, Pedro.”

“É verdade, amigo, mas ela não era por mim, Paulo, fazer o quê!? Isso já é passado. Se bem que às vezes ainda me pergunto se a minha Dalva, tal qual aquela da canção popular, ainda consegue deixar a lua tonta... E você, meu bom Pedro, fale-me um pouco de você.”

“Bem, você quer mesmo saber, Paulo!? Continuo tentando entender o amor...”

“Mas o amor é ininteligível, imponderável e inexplicável. Talvez seja ele a maior das incógnitas, Pedro. Acho que nem mesmo Einsten, com todas aquelas fórmulas, o conseguiria decifrar...”

“A propósito, amigo Paulo, diga-me, você ainda anda com aquelas idéias de colher girassóis em Vênus e margaridas em Marte ?

(Paulo, quando menino, ao ver pela televisão, o homem pisar na lua, ficou tão fascinado com aquela cena que vivia por aí a dizer que tudo faria para entrar na Força Aérea Brasileira, e, quem sabe um dia, ainda se tornaria o primeiro cosmonauta jardineiro do Brasil...)

“Não, não, amigo Pedro. Agora só pretendo ter os pés neste chão nosso de cada dia, e ser feliz ao lado da minha pequena Olívia. Ainda assim, por que não também brindarmos ao Capitão Kirk, ao Spock, ao Dr. Smith e ao menino Willy !?”

“E ao luar do sertão”, completa Pedro.

“Bem lembrado, Pedro, e ao luar do sertão, por que não!?”

E olhando para o infindo vazio do copo, Paulo não se contém:

“Você e essa sua alma de poeta, Pedro. Foi tão bom encontrá-lo, recordar aqueles anos em que acreditávamos que os deuses eram astronautas, que a felicidade morava ao lado, e que até mesmo o céu podia esperar...”

Um trecho de um cantata de Bach propaga-se pelo ar. Vem do bolso do casaco de Paulo. Ele atende o celular, e vira-se para Pedro.

“É ela querendo saber onde estou, com quem estou, e se vou demorar. Bem, meu bom Pedro, preciso ir.”

“Eu também. Parece que o trânsito melhorou...”

“Não vamos mais nos perder por aí...”

“Nem pensar, Pedro, nem pensar!!!”

Paulo e Pedro trocam cartões e caminham até os seus automóveis. Depois de um caloroso, sonoro e fraterno abraço, sentam-se ao volante, dão a partida, e, tomando rumos opostos, afastam-se deixando no ar da noite já parcialmente enluarada o suave aroma de uma hibrida mistura de nostalgia, esperança, etanol e gasolina...

FIM

Conto de Zizifraga

Setembro de 2017.

Nota:

(*) Especialmente nos Estados Unidos. Período do dia em que drinques são vendidos a preços reduzidos em bares, lanchonetes e hotéis...

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 01/10/2017
Código do texto: T6130386
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