CRÍTICA DA RAZÃO, NA PRÁTICA

Estou jantando com minha namorada, ela adora as batatas fritas que meu avô prepara. Como um pouco de arroz com frango frito e o que eu acredito ser uma gastrite me devora por dentro. Contorcendo-me, olho para o lado e vejo um rato enorme atravessando a cozinha.

Dou um pulo com o susto.

Digo para ela que meu espasmo foi devido à dor, não quero que ela pense que há ratos em minha casa.

Alguns dias depois meu amigo André olha pela janela e diz:

- “Caralho”, eu vi um rato enorme.

Tento disfarçar a situação, mas desta vez ele o viu.

Depois destes acontecimentos começo a andar sempre de chinelos, nunca descalço, não quero uma leptospirose.

Estou no meu quarto ouvindo música, apenas pensando em nada e no infinito. Um barulho estranho ecoa, o rato aparece e corre de mim.

“Chega, desisto” fala para mim mesmo.

Decido que tomarei providências. Porém, nada parece me agradar. Procuro na internet ratoeiras, armadilhas e venenos, mas nada me parece eficiente. O melhor veneno para ratos foi retirado do mercado devido a uma onda de suicídios e de acidentes com crianças.

Pensando bem é uma boa ideia não poder comprá-lo, a vida anda um saco.

Fazia um bom tempo que eu queria adotar um animal de estimação, sabe tirar a liberdade de uma criatura em nome do meu desespero e egoísmo. Resolvi arrumar um gato, a ideia a princípio me parecia genial, podia juntar o útil ao agradável. Pesquisei alguns filhotes de raça para comprar e por um momento me peguei pensando no quão absurdo é a venda de animais, quero dizer, um primata com polegar opositor bota um felino em uma jaula e o comercializa.

Tragam-me o veneno.

Adotar me parecia a melhor solução.

Buscando em um site de anúncios encontro um rapaz próximo à minha vizinhança doando um filhote.

Era meu dia de sorte.

Após algumas mensagens trocadas consigo marcar um horário e local para pegar o gatinho. Aliás, o português do cara era ridículo, ele chegou a escrever “serto”.

Antes de nos despedirmos ele me mandou a seguinte mensagem:

“Preciso de uma peçoa que cuide muito ben dele. Minha namorada tem bronquite, e é só por causa disso que estamos doando.”

“Pode contar comigo”, respondo.

Fazia muito frio aquela noite, coloquei três casacos e um boné branco para que o rapaz me reconhecesse.

Combinamos de nos encontrarmos em frente a uma igreja, um ponto bem conhecido na região. O maldito se atrasou mais ou menos vinte minutos, tive que ficar olhando para todas aquelas pessoas entrando naquela caixa de tijolos enquanto me perguntava o porquê de tanta coragem para sair naquele frio rezar. A fé era a resposta, algo que eu invejo muito, a descrença é uma maldição. E caso você seja amaldiçoado lhe desejo boa sorte, e isto na verdade é tudo o que lhe resta, a sorte e o acaso.

Atravessando a rua vejo o rapaz com uma caixa em uma mão e uma sacola na outra. Ele sorriu e disse:

- Você é o moço do gatinho?

- Sim, sou eu mesmo – respondo com o mesmo tom de cordialidade.

- Trouxe ele dentro desta caixa, pois os carros o assustam – disse ele me entregando a pequena caixa de papelão e uma sacola de ração.

O rapaz se despede e eu o cumprimento. Logo após, abro um pouco a caixa para enxergar o meu futuro caçador de ratos. Ele me olha assustado e mia baixinho, passo a mão nele e digo que tudo vai ficar bem.

A caminhada fora difícil, o bichano se mexia muito na caixa, o que me desequilibrava todo. A caixa de papelão estava selada com fita adesiva, porém aos poucos foi descolando, o que me causou muito transtorno.

Chegando em casa, de dentro de um canil uma cadela que meu avô cria em condições deploráveis ouve um miado e começa a latir muito. Não grito com ela, pois sei que apenas está seguindo instintos, reprovar os impulsos dos animais talvez seja uma maneira de exibirmos nossa raiva perante nossa liberdade. O gatinho se assusta com os latidos pois eles foram bem raivosos, mal sabia ele que o pior animal da terra falava de forma calma e doce que ia ficar tudo bem.

Entrei no banheiro e fechei a porta, não podia correr o risco de o meu novo pet escapar. Abrindo a caixa de papelão tentei acalmá-lo, o desespero era perceptível em seus olhos e o estado dele fez-me questionar o porquê de tudo aquilo. Peguei um coelho de pelúcia e tentei interagir, mas mesmo assim acho que ele não gostou da ideia de ficar trancado com um animal de mentira, estou falando de mim e não da pelúcia.

Depois de muito tentar consegui me aproximar do gato, a esta altura já se enrolava em minhas pernas.

Mas afinal, o que eu estava pensando? Meu avô odeia gatos! Como eu explicaria isto para ele?

E, aliás, eu também odeio animais, só peguei este gatinho para me livrar de outro animal. Tudo bem que ratos são asquerosos e podem passar doenças, mas qual é a diferença entre um gato e um rato? As doenças? Não quero discutir isso, sinceramente. Amamos uns, torturamos e matamos outros, fim de papo.

Meu avô nunca foi uma pessoa muito boa com animais, como a maioria, ele acredita que somos superiores, isso justificaria suas ações.

Me desculpa tá! Eu precisava me livrar daquele gato, era eu ou ele. E pior, se eu não o fizesse meu avô faria. Sim, que reviravolta, nem eu mesmo entendi a situação.

Coloquei-o do portão para fora e fechei mais rápido possível, o filhote ficou parado no portão miando com todas as forças, aquilo estava me matando.

Desesperado, recolhi e enfiei o gatinho na caixa e lacrei-a mais uma vez com fita adesiva.

Onde eu poderia abandoná-lo? Eu não imaginava lugares para isso, para mim todo o universo é um abandono, seria impossível encontrar um lugar.

Caminhando pela rua eu não conseguia imaginar um lugar para abandoná-lo, qual a dificuldade?

Desta vez antes de sair de casa eu só tinha colocado uma blusa e o frio gelado cortava-me o peito. Temos liberdade de ir e vir, mas felizes são os gatos que tem um casaco próprio. Matamos a evolução para não matarmos a nós mesmos.

Chegando perto do colégio onde cursei o colegial imaginei que lá seria o melhor lugar. No dia seguinte as pessoas se comoveriam e alguém o adotaria, eu me senti mais aliviado e a consciência que me permitia ser um monstro para um filhote agora tentava me acudir.

Enquanto escrevo isto meu avô está mandando nossa cadela calar a boca.

Mas voltando à tragédia...

Abri a caixa o mais rápido que pude, olhei para o gatinho desesperado e me desculpei.

Coloquei-o em cima do muro.

Não olhei para trás.

Tentei não ouvir os miados desesperados.

Tentei não imaginar o frio que o esperaria durante a madrugada.

Tentei não imaginar a fome e a sede que o assolariam durante toda aquela noite.

Tentei não imaginar a confusão em sua mente ao ser tirado de sua casa para sofrer aquilo.

Joguei a caixa de papelão no mato em mais um ato tipicamente humano e corri para minha casa.

Durante esta noite pensei sobre vários temas que ainda me assombram, fui da fé à moral humana. Agora tenho mais uma coisa que me aterroriza, a imagem do gato desesperado em cima do muro tentando entender a situação.

Devo agradecer por não ser um personagem do Edgar Allan Poe.

Pobre gatinho, a falta da razão o fez desentender as circunstâncias, mesma razão que permitiu meus atos.

Tragam-me o veneno.

Bruno Talles
Enviado por Bruno Talles em 13/11/2017
Reeditado em 22/11/2017
Código do texto: T6170569
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