Meu terrível patrão

Matilde odiava o emprego. Detestava acordar cedo todos os dias, pegar o ônibus lotado para atravessar a cidade e se enfurnar naquela fábrica por oito horas. Era só olhar para o lado e ver quanta gente estava infeliz, pessoas desestimuladas com o emprego, que só trabalhavam por obrigação e necessidade.

O patrão sim é que era feliz. Chegava de carrão. Tinha motorista. Sua sala era a mais bonita e mais espaçosa, ficava no último andar do prédio administrativo com vista para todas as instalações da fábrica.

Era jovem ainda aquela peste. Sério, discreto, ali não se via simpatia, pelo menos não com ela. Não tinha chegado aos 40 ainda. Muito elegante, bonitão, família linda. Dono de um império era o único que levava vantagem com o suor dos pobres diabos que como ela trabalhavam o dia inteiro para engordar sua conta bancária.

Matilda desconhecia o passado de Mauro e não se dava conta da cara feia com que o cumprimentava quando vez ou outra se esbarravam. Não lhe interessava saber que ele foi pobre na infância. Que catou lixo com a mãe para sobreviver, enquanto o pai, alcoólatra, só os agredia. Passaram fome, frio, indignidade.

Mauro cresceu aprendendo a se virar na marra. Aprendeu o valor do dinheiro bem cedo e conheceu a violência dentro de casa. Ele sabia que não é todo dia que se encontra uma moeda no chão, que se ganha um alimento. Aprendeu aos 8 anos que o lixo precisa ser criteriosamente separado para se ganhar alguma coisa com ele. Foi no lixo que conseguiu muitos livros e com eles aprendeu a querer mais, a estudar, a sonhar com uma vida melhor.

Matilda nunca catou lixo e não sabia o que isso significa. Matilda reclamava todos os dias. Reclamava do que não tinha e do que tinha. Do que vivia e do que não vivia. Reclamou tanto que se tornou hábito. Primeiro reclamava porque o marido ganhava pouco e precisava trabalhar. Quando o marido conseguiu uma oportunidade na fábrica, passou a reclamar de ter que se levantar cedo, deixar os filhos na creche para trabalhar 8 horas por dia.

Matilda ignorava que Mauro, o dono da empresa, trabalhou desde menino para estar ali ostentando aquela posição e o terno preto italiano. Quantas humilhações ele viveu como criança. Quantos nãos ouviu. Mas deu duro. Estudou. Trabalhou. Madrugou. E se na infância vendeu sucata, se na adolescência foi borracheiro, hoje era dono de uma fábrica de peças para automóveis. O negócio expandiu. Começou com uma oficina de fundo de garagem e sua determinação e seriedade o fizeram chegar ali. Naqueles anos deu qualidade de vida aos pais, à irmã, empregou muita gente de rua, ajudou tantas pessoas que perdeu a conta, tantos amigos, fundações, artistas. Infelizmente, a verdade é que ter dinheiro tem dois lados: um bom e outro ruim.

Um é o poder fazer. O outro é a inveja que brota nas pessoas. Infelizmente era odiado pela grande maioria de seus funcionários apenas por ser patrão e odiado por seus conhecidos porque venceu na vida. Ninguém parava para refletir que ele trabalhava antes e depois do expediente e quando os funcionários batiam ponto as coisas davam certo porque ele continuava incansável na liderança.

Matilda era auxiliar de serviços gerais. Sempre que ia até a recepção limpar o piso, ouvia o patrão encher a paciência da secretária, Aline, que só estava ali por ser a filha de um grande amigo e para fazer um estágio com ele:

– Aline, não desperdice tanto papel. As árvores choram quando você faz isso. Como minha secretária precisa conscientizar as outras de que até um rascunho deve ser usado com consciência. Veja quanto papel limpo no lixo.

– Sim, Sr. Mauro.

– Aline, não deixe clipes jogados no chão. Precisa evitar o desperdício. Cada clipes desse é um decréscimo no estoque da empresa.

– Pois não, Sr. Mauro.

– Aline, oriente as auxiliares de serviços gerais a usarem produtos de limpeza com economia. A água também precisa ser tratada com respeito.

– Orientarei, Senhor.

Quando ele virava as costas, Matilda e Aline riam-se dele a valer. “Canguinha”, sussurravam entre si. O viam como um grande chato. Mas no quinto dia útil, mesmo tendo trabalhado de má vontade, batido o ponto por obrigação e sem dar uma contribuição espontânea ao serviço, passasse a fábrica por crise ou não, Aline e Matilda, assim como os outros funcionários, queriam mesmo é receber o dinheirinho na conta.

E Mauro que se danasse e pagasse o devido. Pouco se importavam se riram dele grande parte do mês, se estava com problemas financeiros, pessoais, de saúde ou seja o que for que acontecesse, importava sim que ele pagasse o salário sem atrasos. Por ser patrão era malquisto por tantos e poucos agradeciam contentes ao assinar o contracheque.

Não sabemos por que o ciclo da vida anos coloca como patrão ou empregados. Diz a Bíblia: “a cada um segundo suas obras”. Muitas vezes desconhecemos nossos erros nos pequenos gestos, nas palavras que ferem, nas desatenções que prestamos e atitudes que não tomamos. O que precisamos refletir é que se alguém atinge o sucesso não é por acaso. Há uma história atrás de cada rosto e de cada roupa. Algumas pessoas lutam muito para ter e manter uma empresa. Reclamar, julgar, apontar o dedo é muito fácil. É difícil liderar, tomar a responsabilidade de muitas vidas para si, nem sempre se leva em conta a pessoa por trás do patrão, o ser humano que ele verdadeiramente é e o que passa para estar ali assumindo seu papel. Há bons e maus patrões. Da mesma forma há bons e péssimos funcionários.

No Brasil fala-se muito no direito dos empregados, mas e o direito de quem emprega? Conheci pessoas que encaram a justiça trabalhista com má fé. Pessoas que transitam nos ônibus falando mal de seus empregadores todos os dias. Pessoas que não têm humildade para ouvir que erraram. Empregados que rejeitam o seu empregador pelo simples fato de ter que trabalhar para ele.

Não em refiro aqui aos casos de abuso, de exploração que sei que existem nas empresas e mesmo no serviço doméstico. Falo de empregadores justos de funcionários indolentes, que dão de ombro para o outro e não fazem absolutamente nada por comodismo, só sabem reclamar e se acomodar. Criticar fica fácil assim, mas de críticas o mundo está superlotado. Faltam soluções e iniciativas. Não podemos esquecer que é graças às empresas que muitas famílias se sustentam e sobrevivem; que seus filhos ganham roupas novas e brinquedos, oportunidade de bons colégios. O empregador é antes de tudo uma pessoa que enfrenta altos e baixos como nós e nem sempre ele é terrível, estúpido, apenas incompreendido.