Polenta

POLENTA

A família toda reunida em torno da longa mesa de jantar. Pai à cabeceira, mulher à sua direita, primogênito na esquerda e os três outros filhos em seus respectivos lugares. Negra Bá, a criada da família, menos “criada” e mais “da família”, começa a servir as guarnições e a entrada.

- Bá...tá cheirando bem, hein, mulher? – O pai da família responde – Como sempre é...Mas hoje tá parecendo especial, mesmo...

Bá reclina em agradecimento e serve a sopa de mandioquinha e os pãezinhos.

Enquanto a família discute os planos para a nova casa e sorvem a sopa, Bá segue para a biblioteca para continuar a arrumação. Bá lê as lombadas dos livros enquanto limpa a biblioteca. Já perdeu a conta dos anos em que foi a criada. Agrada-lhe o toque demorado, mas sente saudades daqueles livros de capa dura, parece que não se faz mais livro de capa dura. Os de poema não aprecia, dizem coisa nenhuma. Histórias de amor, romances, esses sim, devem ser coisa boa de ler. Bá nunca leu livros; tem os olhos cansados. Olhos cravados na limpeza, antes de encaixotar tudo.

Terminado com os livros, começa a retirar os camafeus e adornos mais delicados de cima das mesas e embrulha-los em jornais velhos. Coloca-os cuidadosamente nas caixas.

Toca um sino da sala de jantar. Era hora de servir o principal.

Bá se animou. Havia preparado uma surpresa para o prato principal. Esperava que os patrõezinhos apreciassem.

Vai da copa a sala de jantar, levando panelas de arroz, cumbuca de feijão, saladeira e, como principal, uma travessa coberta.

A sala de jantar ficava preenchida com o olor da comida. Maravilhoso. Bá dispõe as panelas e a travessa na mesa. Serve de feijão e arroz cada prato, um prato menor para a salada de cada um e finalmente abre o tampo da travessa. Uma saborosa polenta, esfumaçando, de molho vermelho, estava ali.

Os pais pareceram satisfeitos. Mas apenas isso. Os filhos não esboçaram reação. Apenas ficaram aguardando serem servidos.

- Não tem bife? – O menor inquire.

- Tem sim, senhor. Eu vou fazer alguns e trago para a mesa em um momento – Responde, resignada com a reação da família.

A polenta havia sido a primeira receita que fez para aquela família quando veio trabalhar ali. Ainda jovem, antes mesmo dos patrõezinhos nascerem. O patrão tinha elogiado muito, chegando a chamar de, como mesmo?, “manjar dos deuses”. A contratou ali naquele momento. Desde então ela é parte dessa família. Viu os garotos nascerem e crescerem, viu as brigas e reconciliações, as reformas, as festas. Sempre servil. Era parte daquela família. Um pouco de mágoa ao sentir o desdém do casal por ela ter escolhido esse como a última janta naquela casa, mas chega de reminiscências... Tinha alguns pares de bife para preparar.

Retornou com a tigela de bifes a parmegiana, aproveitando o molho da polenta. Colocou à mesa e deixou que a família se servisse enquanto se retirava para o escritório para terminar a arrumação para a mudança, um tanto amuada.

Quando retorna a sala de jantar, cada membro da família já havia deixado a mesa. Apenas o casal estava no sofá de descanso, próximo a TV.

- Bá, venha cá. – Chama o pai.

- Sim, meu senhor. O que deseja?

- Nós temos um presente para você. – Diz, com um largo sorriso – Nós nos mudaremos na segunda, mas já estamos com os papeis preparados. Essa casa aqui ficará para você!

Negra Bá arreganha o olhar.

- Sim. Isso mesmo. Deixaremos a casa para você.

- NÃO! – Bá exclama, para espanto do patrão. – Meu senhor, num faça isso comigo. Estou há tanto tempo sendo criada do senhor, o senhor não precisa me dar essa casa. Eu vou servir pelo mesmo salário de sempre.

- Não precisa, Bá – O senhor responde, com calma – Você pode ficar com a casa como sua aposentadoria. Se quiser vende-la e comprar uma menor, ainda dá uma boa renda até o fim da vida.

- Senhor....Eu quero ir para a casa nova com a família...

- Bá...eu entendo. Mas a casa nova é maior. Talvez precise de uns 3 empregados. Você já está com a saúde débil. Vc merece descansar, aposentar, cuidar de você.

Em prantos, a velha negra Bá cai de joelhos aos pés do patrão.

- Não, meu senhor. Essa é a única família que tenho. Não tenho mais ninguém. Se o senhor quiser eu trabalho de graça...

- Olha, Bá....me desculpe. Você não ficará desamparada. Mas a casa nova precisa de outros empregados. Ouça meu conselho. Se aposente... Eu te dou a casa e te ajudo com uma renda, ok? É a palavra final.

Derrotada, a negra Bá se levanta. Enxuga as lágrimas e volta para os afazeres da arrumação. Ao passar pela mesa de jantar, ali estava a polenta. Intocada. Ela dá uma fungada e retorna para o escritório, enxugando os olhos.

David Leite
Enviado por David Leite em 30/11/2017
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