Alice

ALICE

Fazia 20 anos que deixou aquele lugar. No entanto, ainda queimado em sua retina estava a imagem de Alice, sempre antes quieta, de dedo em riste apontando a porta, em um primeiro ultimato. Tua princesa havia se tornado, ali, um monstro das mágoas reunidas do casal. Sem o que fazer, tomou o pouco que tinha e caiu no mundo. Desde então jamais retornou, sequer procurou saber daquela casa e de quem restou ali. Quando a idade avançou, achou que seria tempo o suficiente para remir aquela culpa. Queria ao menos rever sua filha. Certamente crescida e bem sucedida, quem sabe casada e com filhos, e ainda menos certo, perdoando o pai alcóolatra. Chegou na soleira da casa, em evidente sinal de abandono. A porta continuava sendo a mesma, mas a tinta estava gasta. Janelas quebradas. Ninguém deveria morar ali. Bateu a porta. Esperou. A ansiedade cresceu com a espera. Se elas tivessem se mudado, jamais as encontraria de novo. Novo bater na porta. Ninguém responde. Esses anos todos tentando trabalhar a culpa, esses anos todos ansioso para, ao menos, entrar em contato e saber como iam, caíram em suas costas como uma bomba. Você reencontra o que perde, não o que abandona, dizia uma frase em algum lugar. Mas não era um abandono covarde. Era um abandono necessário, pensava consigo, para liberta-las dele mesmo. Se justificava desse modo, ao menos.

A ansiedade toma pontas de desespero. Teria que lidar com isso o resto de sua vida. Jamais reencontraria a sua filha.

Pega o primeiro ônibus para ir embora. Senta-se no fundo dele, no fundo dele próprio, no fundo de tudo. Amaldiçoou sua abstemia naquele momento. Precisava de um trago para amainar a angústia como em muito tempo não queria. Olhando para o seu redor, repentinamente, reconhece um semblante. A mesma cara séria da última vez. Era ela. Era Alice. Embevecido pela emoção, sentindo-se salvo de seu crime, salta do assento e explode para a moça.

- Alice!! Minha filha – lágrimas rolam de seus olhos – Não acredito que lhe encontrei....

A moça retorna a manifestação do homem com surpresa e medo. Não o conhecia, não conhecia Alice.

- Filha....perdão...me perdoe, por favor...

A moça fica cada vez mais constrangida e sem reação. O cobrador, percebendo a situação e o estado alterado do homem, se adianta. Pega-o pelo braço e começa a empurra-lo para a saída, enquanto o motorista para o ônibus.

- Não!! Espere...eu preciso que ela me desculpe.....

- Senhor, está atrapalhando a viagem...saia.... – O cobrador o joga para fora, ainda que ele tentasse retornar.

O ônibus segue viagem. O homem, cansado e aflito, se joga em um banco. Com a cabeça baixa...derrotado.

Uma moça senta-se ao seu lado, aguardando o ônibus seguinte. O homem ergue um pouco o olhar e, confuso, nota repentinamente. A mesma cara séria de antes. Era ela....

David Leite
Enviado por David Leite em 30/11/2017
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