Não sou seu parceiro

Caía uma chuvinha fina, do tipo que não vale a pena manter aberto o guarda-chuva. Chuva de molhar bobo como dizia a mãe. Também o guarda-chuva estava em estado lastimável, fazia vergonha andar com ele aberto.

Caminhava firme na rua movimentada do centro. A cada passo os chinelos de borracha, de calcanhares carcomidos, atiravam-lhe lama no short estampado, de tecido ordinário e na camisa do Galo com marcas de tinta adquiridas no dia-a-dia do seu trabalho na etiquetadora. Gotas se formavam na viseira do boné, encorpavam-se até não poderem mais se sustentar e pingavam.

A pressa tinha uma razão: faltavam vinte para o meio-dia, hora em que devia estrar para o trabalho. Estava feliz. Havia aproveitado o horário do almoço para escolher o presente de Natal da mãe, o primeiro de toda a sua vida. À tarde receberia o pagamento, então o compraria. Ele e a mãe só tinham um ao outro. Ela era doméstica e moravam de aluguel, passavam privações, mas ela era cristã e tinha um sorriso que mal disfarçava a tristeza que lhe derramava pelos olhos. Vivia a contar-lhe histórias da Bíblia, seu livro de cabeceira. Dava-lhe conselhos difíceis de seguir como oferecer a outra face e andar o quilômetro extra. Esforçava-se, porém. A última coisa que desejava na vida era causar-lhe mais sofrimento.

Ia nesse pensamento com um misto de alegria e dolorida ternura quando foi alcançado por Magrão, seu colega de trabalho que também seguia para a firma.

_ Oi, Parceiro!

_ Oi!

Na firma todos se tratavam por parceiro. Magrão era maior de idade, tinha dezenove, era meio agressivo e tratava-o às vezes com rispidez, mas aprendeu a tolerá-lo. Até gostava dele. No início quando se sentiu magoado com o parceiro e comentou com a mãe suas grosserias, ela disse apenas: “Jesus morreu também por ele. Aprenda a amá-lo como ele é”. Aprendeu.

_ Quer um?

Meneou a cabeça em recusa ao cigarro que ele lhe oferecia. Magrão acendeu um e continuaram andando calados. Estacionada próximo à agência bancária havia uma viatura da Polícia Militar e um grupo de policiais conversava protegido pela marquise. Quando passaram, dois dos policiais começaram a acompanhá-los e um deles pôs-se a falar com maus modos:

_ Já sabem. Já sabem.

Ele não sabia de nada, mas Magrão parecia saber, pois imediatamente encostou-se com as mãos na parede e as pernas abertas. Em súbita compreensão do que a autoridade quis dizer, mas sem compreender muito bem a razão daquela abordagem estúpida, imitou o parceiro e sentiu as mãos indelicadas a lhe percorrerem os flancos.

_ Seu nome? Um dos policiais dirigia-se ao Magrão.

_ Elpídio. Vulgo Magrão.

_ Tem passagem pela polícia?

_ Tenho, por furto, mas já estou limpo.

_ Ranram! E você? Qual é o seu nome?

_ Juarez.

_ Quantos anos tem?

_ Quatorze.

_ Tem passagem?

_ Não.

Na ânsia de se ver livre daquela situação constrangedora tentou argumentar:

_ Olha, parceiro, eu trabalho na...

_ Não sou seu parceiro. Interrompeu o homem fuzilando-o com os olhos carregados de desprezo.

O outro policial se afastou falando com a central pelo rádio enquanto este continuou com as perguntas. Transcorreram alguns minutos antes que o homem do rádio gritasse de lá:

_ Pode liberar. Estes aí são uns merdas.

Passou o resto da tarde com a dignidade ferida. Uma profunda tristeza de ser pobre, de ser preto, de ser brasileiro. As vozes daqueles ditos responsáveis pela sua segurança, volta e meia rondando-lhe o espírito. “Não sou seu parceiro”, “estes aí são uns merdas”. Ía formando estranho conceitos em sua cabeça: a Lei não o tinha por parceiro. Pobre tinha duas opções: ser bandido ou ser um merda.

Agora rumava para a casa na periferia, com o pequeno pacote debaixo do braço. O rosto bem escanhoado do militar ainda vinha-lhe à mente. A voz triste da mãe insistia: “Jesus morreu também por ele”. Estranho como a religião da mãe levava seus fiéis à condição de ovelhas subjugadas, resignadas, à espera de uma justiça que parecia não chegar nunca. A seu ver, a humildade e a mansidão de Jesus não lhe tinham sido benéficas e nem o são aos seus seguidores, mas a quem mais recorrer? Outra vez a voz da mãe: “só Ele tem palavras de vida eterna”.

Sossegou-se enfim, quando deixou as lágrimas do perdão misturarem-se com a chuva. O guarda-chuva escangalhado cercava precariamente as gotículas iridescentes, matizadas pelas luzes de Natal.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 15/12/2017
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